Era uma vez em Areia Branca… Corria o ano de 1958. A cidade, pequena e calma, preparava-se para o carnaval. No rádio e na sonora da prefeitura, marchinhas recém lançadas, tocadas a todo momento – o samba Madureira Chorou e a marchinha Vai, Mas Vai Mesmo -, animavam foliões com seu apelo carioca. A preparação das fantasias, mesmo simples, a compra de confetes, serpentinas e lança-perfumes traziam uma agitação comemorada pelos comerciantes. Nessa época, diziam ser o carnaval daqui melhor que o de lá. Imagina…
Quase tudo ficava na Rua da Frente, do comércio às empresas salineiras. O Tirol, com seu ar bucólico e recatado, ciceroneava pequenas embarcações durante o dia e pescadores de faz de conta à noite, eu um deles. Ali também ficavam as principais bodegas e armazéns. As bodegas de Antonio Calazans e de Quidoca eram as mais conhecidas, mas não mantinham relação de comércio com as barcaças. Isso era com meu pai e com José Leonel e dona Hilda.
Naquela manhã de fevereiro, minha casa estava com um movimento bem acima do normal. Isabel e Ana Maria, minhas irmãs, saíram pela Rua da Frente e, logo em seguida, retornaram inquietas, agora acompanhadas de Edna e Margarida, filhas de Zé de Quincó. No rosto das quatro, a rara imagem da mais profunda tristeza. Eu, tentando estudar para uma sabatina oral que todos sabemos como funcionava: vinha a pergunta; errou, palmada desferida por quem acertou. Eis por que a lembrança da sabatina não me deixava relaxar.
Em casa, as quatro meninas não falavam com ninguém. Tomavam providências que eu, em minha ignorância de criança, e à distância, não conseguia entender. Percebi que a coisa era séria quando notei que corriam algumas lágrimas em suas faces.
De repente, saíram as quatro pela porta dos fundos, desaparecendo no quintal. Ao longe, deu para ouvir vozes de crianças entoando, no timbre de grilos desafinados, em um fraco si sustenido, um Avé, Avé, Avé Maria, Avé, Avé, Avé Maria.
Na porta da cozinha, surgiu uma delas procurando algo dentro de casa. Demorou um pouco e saiu, carregando algumas coisas nas mãos. Parece que contavam com a cumplicidade de mamãe, porque permanecia calada.
Em certo momento, imaginei ouvir, com os justificadíssimos erros de criança, a expressão Dominus vobiscum, em que, na missa, o sacerdote deseja que Deus esteja com os fiéis. E a resposta foi imediata: Et cum spiritu tuo, que é uma alusão ao Espírito Santo.
Pensei em várias possibilidades. Seria um ensaio para a novena? Seria a simulação de uma missa? Estariam se preparando para ir a um velório?
Aguardei, e a cantoria se mantinha, agora com um timbre choroso em ré maior. O grupo se reunira na sombra de um pé de cajarana, e tinham objetos nas mãos. Ao lado, um velho mamoeiro, de braços cruzados, sisudo, mimetizando duas grandes orelhas com seus frutos, parecia fiscalizar aquela estranha reunião. De longe, o pé de mamão parecia um índio sioux tomando uma decisão.
Falavam baixinho, usavam papéis, cola de goma, feita na hora – grude – e cordão. Aproximei-me de mansinho, quando as quatro punham terra sobre um buraco recém-cavado, e agora alisavam por cima. Depois, uma pequenina cruz feita com gravetos.
Era o enterro de Felipe – Fifi -, o passarinho de uma delas, que havia morrido. Parece ter havido uma fratura na canela, já devidamente reduzida e imobilizada com um palito de fósforo.
Ingenuidade, desapego, camaradagem, sem formatação nem espaço na era do tablet e do smartphone.
17 comentários
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fevereiro 8, 2013 às 6:17 pm
Jerônimo Silva
Dessa vez, o Dr. mexeu com aqueles pensamentos ilhados, quase esquecidos.
Nunca tive um pé de cajarana, ou de ciriguela, de embu-cajá, de cajá, de nenhuma “Spondias”.
Eu sempre plantava o galho, quando estava floreando, as formigas comiam os brotinhos e o pé morria.
A cajarana suporta tudo, seca, vento, tempestade; mas não suporta a formiga.
No lugar da cajarana, na casa de minha avó Antônia, havia dois pés de algaroba que servia para quase tudo: dava lenha para o fugão, sombra e alimentava com as vargens, as cabras, os cabritos.
Apesar da cajarana ser uma fruta muito gostosa, hoje sinto saudade do meu pé de algaroba.
fevereiro 8, 2013 às 8:16 pm
Francisco das Chagas de Brito (Chico Brito)
Caro Evaldo! Madureira chorou de dor … Vai, vai mesmo, eu não quero voce mais… Belas marchinhas que animava os foliões. As serpentinas e confetes que eram lançadas nos blocos carnavalescos como os Remadores e Democratas. Saudades dos velhos carnavais das lanças perfumes sem proibições. Saudades das brincadeiras de criança mesmo sendo num enterro de um passarinho. Saudades da minha terra, saudades das coisas simples que nos levava a conhecer e fazer novas amizades sem a nescessidade do tablet e do smartphone, do computador da internet. Eram brincadeiras simples como jogo de castanha, pião, biloca, tica, chicotinho queimado, jogo de futebol nas várzeas com bolas de meia. Um grande abraço e um bom carnaval
fevereiro 8, 2013 às 9:35 pm
Evaldo Oliveira
Jerônimo, você dispôs de uma planta incrível, a algaroba. Já lamamos sobre ela aqui. A seca, o vento, a tempestade e as formigas, dessas também já falamos. O seu repertório é grande, e sua vivência também. Todos já nos sentimos amigos de sua avó querida. Um abraço.
fevereiro 8, 2013 às 9:37 pm
Evaldo Oliveira
Chico Brito, os Remadores e os Democratas, pareço vê-los ali na frente da prefeitura, com sua agitação infernal. Eu morava ali pertinho, e quando ouvia o alvoroço dos blocos, corria para a pracinha. Lembro também dos bailes na prefeitura.
fevereiro 8, 2013 às 10:19 pm
sônia
Evaldo, desde criança já tinhas uma observação bem `apurada` para perceber todo os acontecimentos com os mínimos detalhes, E o que é mais interessante, guardares esta lembrança até hoje.
Nós, com a pureza de coração, `quase` inexistente em nossos dias, costumávamos proceder assim com os irracionais, pequeninos ou crescidos.
A cumplicidade existente entre as almas femininas foi exatamente o motivo do silêncio da inesquecível D. Ester em respeito à situação.
Costumávamos agir desta forma, naquele tempo… e este sentimento, que nos fazíamos puros, vemos, hoje, maculado com a banalidade que presenciamos diante de tantas desgraças em todas as partes deste nosso Mundo. Em contrapartida, emociono-me diante de tantos nobres sentimentos que emanam de textos assim como os teus e de tantos conterrâneos que nos presenteiam através deste blog ou de seus livros.
E, por falar em carnaval, quanta saudade dos carnavais de Areia Branca, dos blocos de rua, do Clube Ivipanim (também dirigido por meu pai, na época), da alegria dos bailes carnavalescos quando as manifestações de afeto eram desprovidas das maliciosas `segundas intenções`. Saudade… saudade de muitas coisas da minha terra, de onde tão cedo me ausentei, sem sequer entender o porquê (só retornando nos períodos de férias).
Vou tentar descansar em Tibau.
Bom Carnaval a todos, cuidando bem de suas preciosas vidas.
fevereiro 8, 2013 às 10:32 pm
Evaldo Oliveira
Sônia, nossa ingenuidade era até emocionante. E eu ficava esperando os períodos de férias, na esperança de rever, mesmo que de longe, algumas pessoas que estudavam ou moravam fora. Hoje, concluo que o pessoal daquela época viajava muito pouco, e ainda hoje o povo do Nordeste não tem o hábito de viajar, especialmente para fora do país.
fevereiro 8, 2013 às 11:43 pm
Jerônimo Silva
É como dizia o meu Padim, Padim Ciço:
1. “Não derrube o mato, nem mesmo um só pé de pau.”
2. “Não toque fogo no roçado nem na caatinga.”
3. “Não cace mais e deixe os bichos viverem.”
4. “Não crie o boi nem o bode soltos; faça cercados e deixe o pasto descansar para se refazer.”
5. “Não plante em serra acima, nem faça roçado em ladeira muito em pé: deixe o mato protegendo a terra para que a água não a arraste e não se perca a sua riqueza.”
6. “Faça uma cisterna no oitão de sua casa para guardar água da chuva.”
7. “Represe os riachos de cem em cem metros, ainda que seja com pedra solta.”
8. *Plante cada dia pelo menos um pé de algaroba, de caju, de sabiá ou outra árvore qualquer, até que o sertão todo seja uma mata só.”
9. *Aprenda a tirar proveito das plantas da caatinga, como a maniçoba, a favela e a jurema; elas podem ajudar a você a conviver com a seca.”
10. “Se o sertanejo obedecer a estes preceitos, a seca vai aos poucos se acabando, o gado melhorando e o povo ter sempre o que comer.”
11. *Mas, se não obedecer, dentro de pouco tempo o sertão todo vai virar um deserto só.”
Eu acho que o povo até agora não entendeu, que tem que “plantar” e não cortar a “planta”.
O Padim Ciço há muito tempo atrás já falava na ecologia, no meio ambiente.
fevereiro 9, 2013 às 2:04 am
dodora
Mais um belo e sensivel texto nos e presenteado pelo nosso querido amigo.
Assim era no nosso tempo de crianca. A ingenuinidade era a melhor das qualidades .
Um enterro de passarinho. Que coisa linda!!!!!!!!!!!!!. Brincavamos de aniversario e batizados de boneca, com a ajuda dos nossos responsaveis. Lembro perfeitamente das festinhas que fazia com minhas amigas para celebrar datas importantes, para as nossas bonecas preferidas.
Nao eram de porcelana, e nunca tive uma que os olhos mexiam . As minhas eram todas de panos feitas por vovo.
Mas eu as amava e as achava lindas.As musicas de carnaval tinha letras bonitas, e eu preferia o carnaval de Areia Branca ao do Rio de Janeiro.
A liberdade, sem perigo, / Brincava em cima do jeep durante o dia e a noite eram os bailes da prefeitura.Uma fantasia nova todos os dias. Nem sei como apareceia o dinheiro para isto, mas eu tinha.
E aquela musica. QUANTOS RISOS/OH QUANTA ALEGRIA/MAIS DE MIL PALHACOS NO SALAO/ARLEQUIM ESTA CHORANDO PELO AMOR DA COLOMBINA/NO MEIO DE MULTIDAO.
ABRACOS E UM BOM CARNAVAL PARA TODOS NO BRASIL.
Aqui nos Estados Unidos, e um dia comum como todos os outros. Ninguem nem fala nisto.
fevereiro 9, 2013 às 2:20 pm
Othon Souza
Alô Evaldo.
Que bom ler e saber como era Areia Branca antes de eu nascer.
Que bom saber sobre minhas queridas amigas Edna e Margarida naquele tempo.
Que bom relembrar de Zé do Vale (de Quidoca), o maior torcedor do Botafogo que conheci.
Que bom relembrar as marchinhas de letras infantis e despretenciosas.
Que bom relembrar…que bom.
Bom feriado.
Um abraço.
fevereiro 10, 2013 às 8:17 am
Evaldo Oliveira
Dodora, Máscara Negra, de Zé Keti, foi gravada em 1967, e eu me lembro perfeitamente desse carnaval em Natal. Foi um estrondo de sucesso.
fevereiro 12, 2013 às 1:07 am
dodora
Dr Evaldo tem razao. Os carnavais em Areia Branca, lembro das musicas.
Esta todo mundo de ressaca/Ressaca, Ressaca.
Tambem outra musica.
Parece um para,parafuso, dancando no meio do salao./Parece um para, parafuso, /Quamdp ela brinca com o pandeiro na mao/Me empresta yaya seu instrumento,/Assim eu nao aguento/Tambem quero brincar/Se for questao de dinheiro / Eu pago,pago, pago, pra tocar neste pandeiro.
Bem vovo nao gostava desta ultima musica .Achava indecente.
O imagina se ela escuta as que cantam agora.
Abracos
fevereiro 14, 2013 às 11:33 am
sônia
Dodora, indecente mesmo é a dança das mulheres quase nuas sob o ritmo das músicas que doem os ouvidos quando nos detemos nas letras… Ainda bem que aqui e ali alguém deixava tocar as músicas antigas, como Máscara Negra, Aurora, e tantas outras que encantavam os carnavais passados.
Temo a influência de tantas coisas ruins, que vemos hoje, nas nossas crianças e adolescentes… mas que fazer, se é este o Mundo onde vivemos?!!!
Um grande abraço, amiga.
fevereiro 14, 2013 às 11:45 am
sônia
Evaldo, nós, nordestinos, talvez não tenhamos o hábito de viajar por falta de oportunidade: condição financeira ou interferência familiar, entre outros motivos… mas, acredito que vontade não nos falta!!! Quem não gostaria de ir à Croácia, a Paris, ao Japão, Portugal e todos estes lugares onde costumas passar tuas férias?
Mesmo assim, contento-me com o que relatas sobre os lugares por onde andas; pois, o fazes muito bem.
Até um dia!
fevereiro 14, 2013 às 11:54 am
sônia
Jerônimo, vou plantar mais um algaroba no condomínio onde moro, defendendo a ecologia e procurando amenizar o calor que assola Mossoró. Vem pra cá que, em poucas horas, procurarás a praia de Tibau para, fugires deste calor infernal e sentires a brisa do mar destas bandas,ou quem sabe, darás um pulo na nossa inesquecível praia de Upanema!
Avise-me, por favor!!!
Um abraço.
fevereiro 14, 2013 às 1:22 pm
sônia
Peço desculpa: Quis dizer: `um pé de algaroba…`
fevereiro 14, 2013 às 7:19 pm
Jerônimo Silva
Carnaval! não quero nem falar.
Tragédia. Morte em Santos. Carros alegóricos pegando fogo.
Cancelamento do carnaval em toda região.
Prefiro fazer um retiro espiritual, ou ir para dentro do mato.
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Sônia, aqui também faz muito calor, mas quase todo dia chove.
Fico feliz por você haver decidido plantar um pé de algaroba.
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Quando o meu irmão George visitou os familiares da minha mãe, em Icapuí/CE, viu um pé de “coité” que a minha mãe plantou, ela devia ter entre 6 e 7 anos, depois foi dada para ser criada pela minha avó Antônia.
Vê a única lembrança da minha mãe, “deles”, um pé de coité, que ainda estava lá, depois de 66 anos.
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Acredito que a algaroba, o caju, o coco, a cajarana são plantas mágicas, que se cultivadas com planejamento adequado, pode acabar com o sofrimento do povo sertanejo.
Não adianta eles plantar feijão, se a chuva não chega no sertão.
Veja o link: https://areiabranca.wordpress.com/2011/07/30/a-ultima-visao-da-caatinga/ Talvez você não tenha lido.
“Um povo que vivia de corta o mato e vender a lenha, corta até o último pé de mato, não replanta nada”, nem mesmo um pé de algaroba…
fevereiro 14, 2013 às 8:42 pm
Juarez Belém
Lá em Tibau também está fazendo muito calor.