Realizamos uma romaria saindo de Natal, passando por Currais Novos, Caicó, Sousa e chegando a Juazeiro do Norte, onde tive uma audiência privativa com o Padim Ciço. Na volta, passamos por Apodi, Pau dos Ferros, Açu e Mossoró, com o epílogo na Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, em Areia Branca. Essa romaria (via sacra) tinha como fulcro o a despedida em relação a alguns lugares já conhecidos e o desejo de conhecer novos lugares, sonhos da infância. Aí Estão as cidades de Juazeiro do Norte e Sousa, aquela no Ceará e esta na Paraíba. Quase ia esquecendo de Terezina.

Em minha conversa reservada com o Padim Ciço, no silêncio de daquela manhã sem romeiros, falei de Areia Branca e de sua grande festa popular. Ele determinou que eu retornasse ao início e recuperasse o que fora perdido.

Fiz de conta que entendera a determinação. Em casa, decidi remexer em alguns papéis deixados sobre a mesa de trabalho, em que escrevera rabiscos para a minha Balada de Um Penitente, ponto de partida para o desencadeamento dessa viagem. A Balada de Um Penitente é uma via sacra pessoal marcando um tempo de descobertas e de reaproximação. Uma caminhada lenta, solitária, com o viés do descompromisso; marcadores do tempo e do espaço desconectados. Uma busca de não sei o quê. Uma viagem sem ponto futuro. Recolhi fragmentos escritos – ideias, pensamentos, frases soltas – que apareciam em naqueles pequenos papéis, alguns já rasgados, restos de um esforço literário de pequena monta. 

Ao final, tinha em mãos rabiscos de escritos recuperados, aqui agrupados de forma aleatória. Eis o que restou:

Areia Branca, Rua da Frente; do outro lado, manguezais no céu limite. 

Carago que outrora foi sal.

Caminhos, veredas, encruzilhadas; pontos de partida.

Calor quase inferno, mente que tremelica

Desassossego que antecipa o desespero 

Riscos poeirentos em costelas de rios secos

Nascentes esturricadas, há alguns meses prenhas d’água.

Na pisada do tatu, muitas vezes viro bola para rolar na ribanceira

Quando as pernas dificultam, na inadimplência da razão, a visão se encaracola.

O claro se escurece; a noite montando jumento dá guarida a todo o mal que fica no rés-do-chão, aguardando outra manhã para poder se renovar.

No pipocar do fogo fátuo, na ira do boitatá, homem virando onça, boi virando emboá.

Restos de uma litania. Fragmentos de escritos não aproveitados no prato principal. 

Uma feijoada literária.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Gohar vivia como mendigo, circulando por ruas e vielas miseráveis da cidade do Cairo, capital do Egito. Jovem de excelente nível cultural, trabalhara como professor universitário, e atualmente vivia na esperança de encontrar o amigo Yéghen, um poeta desiludido que tinha no consumo do haxixe sua única e vital atividade. Dividir a droga com Gohar era o sumo prazer do jovem poeta.

Naquele dia, no ambiente miserável de seu quarto imundo, forrado por papéis sujos, Gohar fora despertado pelos urros mecânicos, gritados por carpideiras gordas, vestidas de preto, que ecoaram por seus ouvidos, como o chamado de um universo estranho. Para uma falsa garantia de limpeza, as mulheres jogaram baldes d’água no chão. A água escorreu e molhou os jornais que serviam de cama para Gohar. Ele não reconhecia naquele jogo mercenário a marca de um mundo humano. 

No início da tarde, Gohar deixou seu aposento sem ter uma bolinha de haxixe para mascar e, enlouquecido pelos efeitos da falta da droga, dirigiu-se a um prostíbulo, na ânsia de encontrar Yéghen, porém ele já havia saído. Ali, sem qualquer justificativa, e sem saber por que, Gohar matou uma jovem e bela prostituta por esganadura. 

Nour El Dine era o policial encarregado da investigação. Conhecido como um homem violento, viu-se envolvido pelas conversas de Yéguen, que tentava a qualquer custo livrar o amigo Gohar de ser incriminado pelo assassinato da prostituta. Em seu último depoimento, respondeu às indagações do policial com extrema ironia. Depois de uma série de bofetadas, o policial, ordenou que retirassem Yéguen da sala, e tomou uma decisão inusitada. Afastou-se de tudo que até ali representara. Pela primeira vez em sua vida, sentia uma imensa necessidade de paz. Simplesmente paz. 

Mais uma vida marginal nas ruas da capital do Egito. Desesperança que se replica.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Base do texto: livro Mendigos e Altivos, de Albert Cossery, da Conrad Editora

Não sei se teremos tempo para outras romarias, e suspeito de que esta poderá ser a última. Por isso, a pressa das pessoas cansadas. O roteiro pode ser este:

Diferentemente dos anos anteriores, este ano a romaria se iniciará em Sergipe. Aqui, visitar a cidade histórica de São Cristóvão, que fica a cerca de 40 km de Aracaju; passar por Alagoas, chegar em Pernambuco, admirar seus canaviais e seus riachos magros, de caminhada lenta. Adentrar a Paraíba e chegar ao Rio Grande do Norte. Em Natal, a sensação de sentir o mar conjurando com o nosso intuito de despedida. 

Em Açu, contemplar duas placas, enigma ainda hoje sem resposta. Por que Açu antes do rio e Assu depois? Para conferir, caminhar por suas ruas e conhecer seu povo. E a resposta virá, acredito. Afastando-nos das duas placas, termos a ventura de admirar o voo de um carcará. Ou será pedir demais? De passagem por Mossoró, entrarmos pela vez derradeira em seu Mercado Público, deixando ali o nosso último olhar extasiado, preso à visão de bugigangas do povo, expostas em um tumulto organizado.

Na estrada, no rumo de Areia Branca, vislumbrar as casinhas que tentam se esconder atrás de pequenos arbustos, tendo ao lado um cavalo mecânico petroleando o progresso, quiçá o futuro. Quilômetros mais feliz, vislumbrarmos uma placa – Areia Branca a 20 km – e sentir o cheiro do salitre dominar nossas entranhas, nossas vias, nossos sistemas e aparelhos, todos.

Na chegada, ao avistar Upanema à nossa direita, uma parada, talvez a última, com a alegria ainda ativada por rever Pedrinhas e Casqueira. Em Upanema, caminhar devagar até o velho Farol, em uma reverência silenciosa, daquelas de antigamente, quando a gente beijava a mão de nossos pais. 

No Cais da Rua da Frente, uma olhada para o rio Ivipanim, em um genuflexo com jeito e sabor de despedida. Ali, erguer o olhar e contemplar o manguezal que emoldura o outro lado do rio, satisfazendo-nos com a visão de uma canoa cesariando a barriga do rio da nossa infância.

Pela última vez, caminhar pela Rua do Meio, naquele pedacinho que vai da Pracinha ao Cine Coronel Fausto – especialmente do lado direito -, buscando aqui e ali vestígios de antigas pegadas inscritas em calçadas com cimento ainda fresco. Finalmente, fechar em definitivo  o Portal da Rua do Meio, defronte àquela esquina da qual tanto falamos, encerrando a página derradeira do meu livro. Sair sem voltar o olhar. Não repetirei o erro de Orfeu, que havia prometido a Hades, o deus dos mortos, que não olharia para trás, e olhou, fazendo com que sua amada retornasse aos umbrais do Submundo.

Na Pracinha, agora renovada, deixar algumas gotas expelidas quase sem pressão por glândulas lacrimais em desalinho. Mirar em frente, no rumo do antigo açude, e caminhar pelas ruas hoje asfaltadas, e ouvir o povo com seus falares sotaqueados de nossa meninice, revirando e tentando renovar as energias de um corpo incapaz de reter e manter um nível adequado de carga. Sinal da bateria no vermelho. 

Sei que a bela Cidade de Maritacaca fará uma formatação em meu nível de energia, e retornaremos a Upanema. O mar nos espera!

Projeto Romaria. Um caminho para o autoconhecimento.

EvaldOOliveiraSócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico

Menino, o que você fez na vida, quais suas perspectivas, seus sonhos, seus interesses, suas marcas, seus arranhões, suas cicatrizes? Afinal, quais as suas credenciais? Desse modo, fui inquirido pelo Destino, em janeiro de 1960. É que eu estava de mudança para Natal, e uma avaliação de possibilidades fazia-se necessária. Uma espécie de planejamento estratégico sem metas nem ponto futuro. Aqui, não falarei de meus nove irmãos.

Sr. Destino, o que fiz, nesses catorze anos de vida, foi pouco, face aos perigos a que a vida me expôs. É que não tenho grandes posses, e meu círculo de amizades é pequeno. Mas conheço bem os perigos dos caminhos, os riscos das encruzilhadas, a doçura do afeto e o gosto travoso do fel da indiferença. Só tenho catorze anos, mas trago comigo a dureza pura aço, aqui forjado nas labaredas das dificuldades.

Durante o ano de 1952, Sr. Destino, estudei no Círculo Operário, uma escola pobre, ali na Rua do Meio, que alguns insistem em chamar de Coronel Liberalino. No Círculo Operário, desvendamos os mistérios da Carta de ABC e da Cartilha. Lá, conheci as sabatinas, em que o peso da palmatória se sobrepunha ao rigor do bom senso. Conheci também o castigo de joelhos em cima do milho. No contraponto, aprendi a cantar o Hino Nacional e a ser solidário, a repartir o espaço com os colegas e a lavar as mãos para merendar, além de conhecer os princípios da disciplina.  

Estudei no Grupo Escolar Conselheiro Brito Guerra nos anos de 1953, 1954, 1955, 1956 e 1957, quando fiz o Exame de Admissão, onde boa parte da molecada perdia o rumo, e fui estudar na Escola Técnica de Comércio por dois anos. 

Senhor Destino, veja como é curto o meu relatório. Três itens. Aqui, não fiz citações sobre atividades fora da escola, as extracurriculares. Não falei das coisas da vida, da felicidade do encontro e das dores nos dias de lágrima. Eu, criança, tomava conta de uma bodega junto com meu pai. E havia plantão todos os domingos. E nos feriados também.

Não incluí nesse relato os medos que as noites escuras traziam, amplificando os ruídos vindos do rio que corria em frente, transformando-os em estrondos de trovão. Os barulhos vestiam roupa de fantasma e ficavam a noite inteira cortando meus sonhos bons, incluindo no roteiro assombrações e devaneios aterrorizantes. 

Não incluí a afeição que sentia/sinto pela família Cirilo (José Cirilo, dona Mariinha, Maria Laís, Ceci, Anália, José, Chico e Raimundo), os Buendia de minha Macondo. Pessoas verdadeiras, íntegras, trabalhadoras, honestas, e igualmente esquecidas. 

Do mesmo modo, não entraram minhas visitas ao mercado público, quase todas as manhãs, quando ficava assistindo aos repentistas se digladiarem em disputas tipo sem querer-querendo. Em outros momentos, assistia aos vendedores de remédios milagrosos que, com um microfone no pescoço e espuma no canto da boca, vendiam nada mais do que falsas ilusões. Não constam os passeios pelas praias de águas limpas, admirando os siris em sua exibição matinal, expondo suas patinhas cortadeiras que muito me assustavam. Também não constam as estórias do bicho papão nem dos comunistas, que comiam o fígado das crianças. 

Finalmente, não consta o medo que tinha de passar pela Rua da Saudade, por causa do cemitério. Lembro, mas não está nesse relatório que lhe disponibilizei, de que certa vez, no carnaval, quando passávamos em frente ao cemitério, com o Bloco da Chica Pelada, capitaneado por meu irmão Mauro, ter sentido nas canelas finas um formigamento, tipo repuxão, quando gritaram que as almas estavam saindo para entrar no nosso bloco. 

Este é o meu currículo, Sr. Destino. E vou para Natal pensando em vencer na vida, e meu pai está doente. 

Seis anos depois, estaria me matriculando no curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Texto já publicado neste blog em 2013, com outro título e outra formatação

Os detalhes estão nas pequenas coisas, esquecidas pelos apressados, ocupados com os grandes eventos, que rendem pixels e flashes. O ideal é dispormos de tempo para perceber os movimentos sutis, satisfazermo-nos com um detalhe simples, capaz de tocar nossa sensibilidade e nos emocionar. 

Em Areia Branca, a sensação de ver o rio Ivipanim de rostinho colado com o mar, naquele remanso gostoso da preamar, no Pontal. Ali, a justa medida do sonho. O mar, obedecendo à determinação do oceano, vai, na sequência, constranger o rio, com o uso  abusivo de sua força, empurrando-o de volta, enquanto a maré se prepara para mais um evento de sizígia,  inundando os manguezais com suprimentos e visitantes. 

Em uma viagem de trem, perceber um rostinho de criança colado ao vidro do vagão, contando aos gritos árvores e casinhas distantes que passam correndo ao lado da estrada.

Visitando um imenso cemitério, perceber uma vela acesa no menor dos túmulos, no despertar da manhã. Aqui, a resiliência da saudade.

Nos movimentos sociais, emocionar-se com rostos sofridos e mensagens de não acomodação, em protesto ao que aí está posto, sempre. 

Em um quintal, a valorização de uma pitangueira prenha de flores, bem ao lado de um condomínio de formigas. Se percorrer a área com cuidado, vai identificar alguns olhinhos de saguis e, no alto da árvore ao fundo, um sabiá ensaiando o canto para sua amada, na árvore do vizinho. Aqui, a voz da natureza, que é uma das formas de Deus..

Ainda no quintal, emocionar-se com o canto (grasnado) de um tucano no alto de uma árvore, e em seguida acompanhá-lo em seu voo.

Em São Paulo, descobrir -se rindo com este aviso em uma lanchonete: Pastel de vento em falta

Em Areia Branca, contemplar a paz que emana deste perna de pau gigante, na beira do cais, tendo ao fundo um intrigante pôr do sol! Não sei quem é o autor desta foto.

Nada aqui é grandioso por si, mas o é por nós.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

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