Desde pequeno ouço essa palavra – menino – composta por seis letras, e que significa uma pessoa do sexo masculino quando em sua infância, sendo também usada para identificar diferenças sexuais ou culturais entre crianças do sexo masculino e feminino. Mas, aqui, o seu significado é genérico, não ligado a fatores de gênero. Portanto, vale menino ou menina.

Diferentemente, criança é um ser humano no início de seu desenvolvimento, e esta fase vai até os oito anos de idade. Já infância é outra coisa. É o período que vai do nascimento até aproximadamente os dez anos de vida. A partir de então, e até os dezoito anos, temos a puberdade, mas aí já é outra estória.

Fui criança em Areia Branca, filho de dono de uma pequena bodega. Éramos nove irmãos e, por onde passávamos, éramos apontados pelas pessoas como os meninos de Zé Silvino, ou os meninos de Ester. Certo dia, seu Lalá da padaria, nosso vizinho na Rua da Frente,  colocou-me no colo e falou com aquela suavidade que somente os avós conseguem impostar: Menino, eu tenho muito orgulho de ser amigo do seu pai.

E essa palavra – menino – me acompanha e me emociona até hoje. Talvez, por isso, eu tenha me especializado em Pediatria (dois anos de Residência Médica em Brasília, com pós-graduação em Homeopatia Infantil em São Paulo).

Neste sentido, poucas coisas mexeram mais com minha emoção do que um fato, acontecido aqui, em Brasília, logo após minha chegada à capital federal. Fui assistir a uma vernissage concorrida de um pintor local, e entrei na fila para assinatura do livro de presenças. Aquela fila recém-iniciada era composta, naquele momento, por cerca de doze pessoas. Na minha frente, compenetrada, encontrava-se uma criança de cerca de oito anos, alegre e conversadora.

Ao chegar a minha vez, tive a curiosidade de ler o que as outras pessoas haviam escrito naquele livro. No item nome, nada de novo: todos corriqueiros; no quesito profissão, a minha surpresa e uma imensa satisfação. Corri a ponta da caneta no papel e fui lendo de cima para baixo. E lá estavam: advogado, médico, artista plástico, estudante, pintor, estudante de novo, funcionário público, farmacêutico, industriário, comerciário, vigia, estilista. Cheguei ao último, que correspondia ao nome da criança que estava à minha frente, até então. O garoto que me antecedera escreveu no local da profissão: Menino

Não era estudante, como as outras crianças. Era menino!

Só tive tempo de me virar e ver seu cabelinho encrespado para cima, às custas de gel, formando uma trunfa no alto da cabeça, tipo pica-pau, sumindo em direção a outra sala, no meio do burburinho formado pelas pessoas, e logo encoberto por bandejas repletas de salgadinhos e taças de espumante.   

Era um menino.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Texto já publicado neste blog, com outra formatação.

Tarde de sexta-feira. Chega à UTI uma paciente de 62 anos com um gravíssimo quadro de sepse pulmonar, evoluindo para um estado de coma profundo, sendo colocada em respiração mecânica. Dias depois, a paciente foi submetida a traqueostomia. 

A paciente tinha muitos filhos, e dois deles se alternavam nos cuidados com a mãe, que continuava em coma profundo. Ficavam ao lado da cama fazendo orações, esforçando-se para que ela os escutasse, mesmo naquele estado vegetativo. Nas passagens dos plantões, a paciente era referida como aquela que não inspirava qualquer chance de sobrevida.

Dos dois meses que passou na UTI, a paciente esteve em coma por vinte e um dias. Certa manhã, a equipe percebeu que a paciente começara a emitir pequenos sinais de melhora. Dias depois, saiu do coma, e foi suspensa a respiração mecânica. Retirada a cânula da traqueostomia, a paciente  dava claros sinais de que queria dizer algo. Dias depois, começou a falar. O médico responsável pela UTI, ao saber que os dois filhos de sua paciente eram padres, brincou:

– Dona Elvira (nome fictício), assim até eu sarava!

E o riso foi geral. Recebeu alta e foi para casa. Um mês depois, um enfermeiro da UTI chegou na manhã da segunda-feira eufórico: encontrara dona Elvira em um clube de Caldas Novas com um grupo da terceira idade, brincando na piscina.

Um rapaz de 22 anos, dependente químico e pai de dois filhos pequenos, dirigia-se do Gama (cidade satélite a 30 km de Brasília) para o plano piloto, sofrendo um gravíssimo acidente de moto, ocasionando secção completa da coluna toracolombar, com desencontro das partes proximal e distal da coluna.

Junto com a lesão da coluna, sofrera um traumatismo craniano grave, com hematoma. Seu estado era desesperador, com midríase – dilatação das pupilas -, e sem qualquer reação aos estímulos. Mesmo assim, com mínimas esperanças de sobrevida, o jovem foi levado para o centro cirúrgico para drenagem do hematoma, permanecendo em coma profundo por algumas semanas, em ventilação mecânica, sem apresentar qualquer melhora do quadro clínico.  

O paciente do leito vizinho ao do motoqueiro começou a ler trechos da Bíblia durante boa parte do dia, e fazia questão de se dirigir para o rapaz, como se aquela leitura fosse para ele.

Após a alta do paciente do leito vizinho, a esposa do rapaz passou a ler trechos da Bíblia para ele, imitando o que até ali fizera o senhor que recebera alta. Depois de quarenta dias internado, o paciente começou a apresentar melhora. Dias depois, conseguia ler trechos da Bíblia com a esposa e, mesmo sabendo-se paraplégico, vez por outra falava em voz alta para todos na UTI: 

– Gente, Deus existe! E eu sou a prova!

Sua alegria contagiava toda a UTI, e os outros pacientes vibravam com suas palavras de satisfação pela vida. Na sequência, recebeu alta. Soube-se que havia largado as drogas, e se dedicava a cuidar de sua família, com o foco em seus dois filhos.

A fé. Uma luz no fim do túnel.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Recentemente descobriu-se que meditações e preces coletivas produzem uma energia altamente ordenada, e capaz de alterar o mundo físico. Em outras palavras, descobriu-se que a intenção humana é capaz de afetar o mundo; que o pensamento direcionado pode alterar, entre outras coisas, a direção em que os peixes nadam em um aquário e as reações químicas do corpo humano. Em síntese, o pensamento humano pode transformar o mundo físico, e essa capacidade pode ser incrementada por meio da prática. 

Realizamos uma romaria saindo de Natal, passando por Currais Novos, Caicó, Sousa e chegando a Juazeiro do Norte, onde tive uma audiência privativa com o Padim Ciço. Na volta, passamos por Apodi, Pau dos Ferros, Açu e Mossoró, com o epílogo na Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, em Areia Branca. Essa romaria (via sacra) tinha como fulcro o a despedida em relação a alguns lugares já conhecidos e o desejo de conhecer novos lugares, sonhos da infância. Aí Estão as cidades de Juazeiro do Norte e Sousa, aquela no Ceará e esta na Paraíba. Quase ia esquecendo de Terezina.

Em minha conversa reservada com o Padim Ciço, no silêncio de daquela manhã sem romeiros, falei de Areia Branca e de sua grande festa popular. Ele determinou que eu retornasse ao início e recuperasse o que fora perdido.

Fiz de conta que entendera a determinação. Em casa, decidi remexer em alguns papéis deixados sobre a mesa de trabalho, em que escrevera rabiscos para a minha Balada de Um Penitente, ponto de partida para o desencadeamento dessa viagem. A Balada de Um Penitente é uma via sacra pessoal marcando um tempo de descobertas e de reaproximação. Uma caminhada lenta, solitária, com o viés do descompromisso; marcadores do tempo e do espaço desconectados. Uma busca de não sei o quê. Uma viagem sem ponto futuro. Recolhi fragmentos escritos – ideias, pensamentos, frases soltas – que apareciam em naqueles pequenos papéis, alguns já rasgados, restos de um esforço literário de pequena monta. 

Ao final, tinha em mãos rabiscos de escritos recuperados, aqui agrupados de forma aleatória. Eis o que restou:

Areia Branca, Rua da Frente; do outro lado, manguezais no céu limite. 

Carago que outrora foi sal.

Caminhos, veredas, encruzilhadas; pontos de partida.

Calor quase inferno, mente que tremelica

Desassossego que antecipa o desespero 

Riscos poeirentos em costelas de rios secos

Nascentes esturricadas, há alguns meses prenhas d’água.

Na pisada do tatu, muitas vezes viro bola para rolar na ribanceira

Quando as pernas dificultam, na inadimplência da razão, a visão se encaracola.

O claro se escurece; a noite montando jumento dá guarida a todo o mal que fica no rés-do-chão, aguardando outra manhã para poder se renovar.

No pipocar do fogo fátuo, na ira do boitatá, homem virando onça, boi virando emboá.

Restos de uma litania. Fragmentos de escritos não aproveitados no prato principal. 

Uma feijoada literária.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Gohar vivia como mendigo, circulando por ruas e vielas miseráveis da cidade do Cairo, capital do Egito. Jovem de excelente nível cultural, trabalhara como professor universitário, e atualmente vivia na esperança de encontrar o amigo Yéghen, um poeta desiludido que tinha no consumo do haxixe sua única e vital atividade. Dividir a droga com Gohar era o sumo prazer do jovem poeta.

Naquele dia, no ambiente miserável de seu quarto imundo, forrado por papéis sujos, Gohar fora despertado pelos urros mecânicos, gritados por carpideiras gordas, vestidas de preto, que ecoaram por seus ouvidos, como o chamado de um universo estranho. Para uma falsa garantia de limpeza, as mulheres jogaram baldes d’água no chão. A água escorreu e molhou os jornais que serviam de cama para Gohar. Ele não reconhecia naquele jogo mercenário a marca de um mundo humano. 

No início da tarde, Gohar deixou seu aposento sem ter uma bolinha de haxixe para mascar e, enlouquecido pelos efeitos da falta da droga, dirigiu-se a um prostíbulo, na ânsia de encontrar Yéghen, porém ele já havia saído. Ali, sem qualquer justificativa, e sem saber por que, Gohar matou uma jovem e bela prostituta por esganadura. 

Nour El Dine era o policial encarregado da investigação. Conhecido como um homem violento, viu-se envolvido pelas conversas de Yéguen, que tentava a qualquer custo livrar o amigo Gohar de ser incriminado pelo assassinato da prostituta. Em seu último depoimento, respondeu às indagações do policial com extrema ironia. Depois de uma série de bofetadas, o policial, ordenou que retirassem Yéguen da sala, e tomou uma decisão inusitada. Afastou-se de tudo que até ali representara. Pela primeira vez em sua vida, sentia uma imensa necessidade de paz. Simplesmente paz. 

Mais uma vida marginal nas ruas da capital do Egito. Desesperança que se replica.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Base do texto: livro Mendigos e Altivos, de Albert Cossery, da Conrad Editora

Não sei se teremos tempo para outras romarias, e suspeito de que esta poderá ser a última. Por isso, a pressa das pessoas cansadas. O roteiro pode ser este:

Diferentemente dos anos anteriores, este ano a romaria se iniciará em Sergipe. Aqui, visitar a cidade histórica de São Cristóvão, que fica a cerca de 40 km de Aracaju; passar por Alagoas, chegar em Pernambuco, admirar seus canaviais e seus riachos magros, de caminhada lenta. Adentrar a Paraíba e chegar ao Rio Grande do Norte. Em Natal, a sensação de sentir o mar conjurando com o nosso intuito de despedida. 

Em Açu, contemplar duas placas, enigma ainda hoje sem resposta. Por que Açu antes do rio e Assu depois? Para conferir, caminhar por suas ruas e conhecer seu povo. E a resposta virá, acredito. Afastando-nos das duas placas, termos a ventura de admirar o voo de um carcará. Ou será pedir demais? De passagem por Mossoró, entrarmos pela vez derradeira em seu Mercado Público, deixando ali o nosso último olhar extasiado, preso à visão de bugigangas do povo, expostas em um tumulto organizado.

Na estrada, no rumo de Areia Branca, vislumbrar as casinhas que tentam se esconder atrás de pequenos arbustos, tendo ao lado um cavalo mecânico petroleando o progresso, quiçá o futuro. Quilômetros mais feliz, vislumbrarmos uma placa – Areia Branca a 20 km – e sentir o cheiro do salitre dominar nossas entranhas, nossas vias, nossos sistemas e aparelhos, todos.

Na chegada, ao avistar Upanema à nossa direita, uma parada, talvez a última, com a alegria ainda ativada por rever Pedrinhas e Casqueira. Em Upanema, caminhar devagar até o velho Farol, em uma reverência silenciosa, daquelas de antigamente, quando a gente beijava a mão de nossos pais. 

No Cais da Rua da Frente, uma olhada para o rio Ivipanim, em um genuflexo com jeito e sabor de despedida. Ali, erguer o olhar e contemplar o manguezal que emoldura o outro lado do rio, satisfazendo-nos com a visão de uma canoa cesariando a barriga do rio da nossa infância.

Pela última vez, caminhar pela Rua do Meio, naquele pedacinho que vai da Pracinha ao Cine Coronel Fausto – especialmente do lado direito -, buscando aqui e ali vestígios de antigas pegadas inscritas em calçadas com cimento ainda fresco. Finalmente, fechar em definitivo  o Portal da Rua do Meio, defronte àquela esquina da qual tanto falamos, encerrando a página derradeira do meu livro. Sair sem voltar o olhar. Não repetirei o erro de Orfeu, que havia prometido a Hades, o deus dos mortos, que não olharia para trás, e olhou, fazendo com que sua amada retornasse aos umbrais do Submundo.

Na Pracinha, agora renovada, deixar algumas gotas expelidas quase sem pressão por glândulas lacrimais em desalinho. Mirar em frente, no rumo do antigo açude, e caminhar pelas ruas hoje asfaltadas, e ouvir o povo com seus falares sotaqueados de nossa meninice, revirando e tentando renovar as energias de um corpo incapaz de reter e manter um nível adequado de carga. Sinal da bateria no vermelho. 

Sei que a bela Cidade de Maritacaca fará uma formatação em meu nível de energia, e retornaremos a Upanema. O mar nos espera!

Projeto Romaria. Um caminho para o autoconhecimento.

EvaldOOliveiraSócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico

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