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Em 2010, retornei a Areia Branca, exibindo a couraça que a vida fez sobrepor-se à minha carcaça original, aí incluídos aterosclerose, desvios posturais, dislipidemias, HBP, porém sempre mantendo uma forma física razoável graças ao Pilates e às caminhadas. Por  anos, mecanismos foram postos a serviço da criação de uma vestimenta de combate, com fácies às vezes ríspida, outras vezes áspera, todas na defensiva.

Agora, do patamar da igreja, a visão da Rampa, do manguezal e a visão esmaecida da igrejinha de Barra, com sua aura de mistério. Um suspiro. Uma canoa aporta com sua cara de gengibre. Um convite, ou determinação, sob o comando da saudade. Sem perceber, já deslizava pelas águas silentes do rio da minha infância.

As feições do canoeiro, sua postura de gondoleiro veneziano, a austeridade do seu olhar, sua determinação ao segurar o remo contrastavam com a doçura de suas atitudes. O canoeiro logo entendeu que ali estava um ser entregue ao ócio contido, em inteira sintonia com o descompromisso, tentando resistir às emoções que o choque de um reencontro com o passado pode acarretar. Sem que eu falasse, fez deslizar seu pequeno barco por toda a extensão do nosso pequenino e belo rio Ivipanim, agora no sentido de Porto Franco.

Viajei. Com Argos no comando, e eu, Jasão, sem ao menos um deus não olimpiano em nossa comitiva, enfrentamos ameaças, vencemos o terrível monstro de três cabeças, o pensamento só em Medeia, até então com a solicitude e a doçura das fadas. Ali, eu, evaldonauta, reencontra um passado somente seu. Fantasia.

Quase do nada, a Rua da Frente apresentava-se à minha inspeção contemplativa. Ali ficava o matadouro; ali, a bodega de Antônio Calazans; a casa de Manoel Avelino, a igreja, quarteirão onde vivi o lado fantasia da minha vida. Mentalmente, enumerava a sequência de lojas e bodegas de uma Areia Branca que já morreu, mas continua viva no purgatório das minhas lembranças.

Ali, o Botequim da Bosta; hoje, uma foto em preto e branco nos mostra sua cara suja e mal cuidada. Ah, para esses lados ficava a usina de luz, o mercado do peixe, a prainha de Zé Filgueira.

Retornemos, pedi ao canoeiro, senhor absoluto dos rastros do rio, domador de ventos e calmarias, como aquela que, ali, nos prendia em frente à prainha, o Pontal à vista. Diabruras do vento, imaginei. Se contasse com a precisão histórica e a memória do Comandante Miranda, tentaria tirar daquele fundo indefinido a imagem quase mística de um sobradinho de taipa, imortalizado pelas lembranças de Deífilo Gurgel. 

Há exatos cinquenta anos passei por aqui, pensei. Sentia algo estranho acomodando-se em mim, como uma pizza existencial meio saudade meio desencanto.

Voltemos. A vida nos espera, e eu me quero vivo.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Menino de Areia Branca, conheci algumas bodegas importantes, quase armazéns. Uma delas era a bodega de Antônio Calazans, na parte de cima da Rua da Frente, um pouco depois da casa de dona Cota, a mãe de Manoel Avelino. Não havia um nome no frontispício. A beleza daquela mercearia estava por trás do balcão. Ali, o destaque era uma estrutura de madeira, bem projetada, que Julieta replicou na decoração do seu apartamento no Rio de Janeiro.

No ano de 1966, nas férias de julho, já estudante do primeiro semestre do curso de Medicina, visitando Alcaçuz, antes que aquele paraíso fosse dominado pela estupidez das drogas e dos fuzis, conheci uma bodega com cara de antigamente. Era a casa/mercearia de Manoel Cabelo Ralo, casado com dona Maria Rala, uma dupla vip daquele vilarejo. Chegamos pela manhã e fomos direto para a bodega do casal Cabelo Ralo.

No alto da casa, a inscrição Secos e Molhados definia, sem arrodeios, os ditames e os interesses comerciais. Um velho banco de madeira, ancorado debaixo de uma árvore, fazia as vezes de abrigo a um cachorro vira-lata quase morto de preguiça, que mal abriu um olho, quando me viu.

O piso na frente da bodega era coberto por cascas de caramujos recolhidos de uma lagoa perto dali. Logo me lembrei da esquistossomose, uma doença terrível.  O que me levara até ali estava dentro da casa; entremos. Ocupando inteiramente a sala da casa, vislumbrava-se uma bodega recheada de produtos. De quebra, a agradável sensação de  que o tempo ali estacionara, em conluio com o silêncio.

À venda, um pouco de quase tudo. De querosene a fumo de rolo, pinga, cabresto, arame farpado, açúcar preto, enxadeco, alpercata, dobradiça, confeito, colorau, tareco, pão doce, rapadura e sabão em grandes barras, que eram cortadas à faca. Ali era vendido fósforo, cigarros Yolanda e até Hollywood. Também havia linha, agulha, dedal, sianinha e ri-ri, como era chamado o zíper em Areia Branca. Sobre o balcão, ainda aberta, uma garrafa de Conhaque de Alcatrão. Em uma prateleira ao fundo, juntos, mariola e pirulitos.

MerceariaFoto internet

Sabendo, através da tagarelice do meu irmão Dedé, que eu era doutor, na hora fui intimado por uma senhora para realizar um parto, ali perto. Conto este momento tenso da minha vida em outra crônica.

Alcaçuz 1971, conluio de tempo e silêncio. Hoje, terror e lágrimas. A desinvenção do progresso.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

 

 

Pela Rua da Frente dos anos 1950 transitavam pessoas de todos os níveis sociais, de autoridades a trabalhadores das mais diversas atividades. Na Rua da Frente, afinal, estavam as melhores lojas da cidade, como as Lojas Paulista, nossa vizinha do lado esquerdo, que tinha como gerente José Dimas, irmão de Bobô. Ali, Chico de Brito exerceu um dos primeiros empregos de sua vida. A loja de seu Quincó, vizinho à casa de Chico Lino, também estava lá, bem como a maioria das bodegas da cidade, por motivos óbvios. Era na Rua da Frente onde as coisas aconteciam.

Os maiores armazéns estavam ali instalados, como o de Antônio Calazans, o de Quidoca, o armazém de Antônio Noronha, além das bodegas de Chico Lino, seu Josa, pai de Bezinho, a de José Silvino; a bodega de José Leonel e dona Hilda, além da fábrica de vinagre de dona Branca, mãe de Tututa e Lázaro, e da padaria de seu Lalá. Tututa foi aquele jovem que saiu pela Rua da Frente exibindo um rádio tocando sobre a cabeça de um conhecido, chamando a atenção de todos para a novidade do momento. A prova da evolução tecnológica.

Desse modo, era para a Rua da Frente que convergiam os interesses das pessoas, os investimentos que geravam trabalho e emprego. No meio daquele tumultuado ambiente, repleto de barcos grandes e pequenos, uma fauna humana circulava em meio ao cheiro de pixe (asfalto em estado líquido), do barulho típico dos calafates e do emaranhado de sons próprios da movimentação das embarcações.

Muitas pessoas circulavam pela Rua da Frente durante o dia, carregando consigo histórias e enredos nem sempre notáveis. Alguns até hoje são lembrados, como Macaco e Mundico, este, filho de seu Isídio, pai de Queca. Entre os desconhecidos, dois homens simples se destacavam. Não porque tinham uma vida comum, mas por serem desempregados, do ponto de vista formal, e desempenharem papel  importante no dia a dia das atividades do cais.

Fernando, sujeito pacato, calmo, de boa índole. Com sua sutil elegância, Fernando participava de quase todos os trabalhos do cais, sem que estivesse formalmente vinculado a nenhum deles. Chegava pela manhã e logo era solicitado a ajudar em alguma tarefa, fosse providenciando uma ferramenta ou disponibilizando algum equipamento solicitado por alguém que trabalhava no cais, ou trazendo água ou algum alimento para os trabalhadores. Com o mesmo desprendimento, também executava pequenas tarefas para os comerciantes. No contraponto, Areia Branca sequer o conheceu.

O outro homem invisível da Rua da Frente era Casca de Ovo. Jamais soube do seu nome real. Era magro, de voz mansa e tom cauteloso, caminhando para lá e para cá o dia inteiro, cumprindo pequenas tarefas, sem que desempenhasse algum trabalho dignamente remunerado. Na ida para lá, algum recado sem qualquer recheio; na volta, uma resposta igualmente desprovida de valor. Parecia um ser evanescente, tocado pelo vento, movido por chamados. Correspondia à forma halogênica mais primitiva do Whatsapp.

Casca de Ovo era o homem dos recados e dos pequenos serviços de dona Hilda, nossa vizinha na costela mindinho direita. Esposa de Zé Leonel, eram os pais de Haroldo, aquele menino que sonhava ser paraquedista. Na hora do almoço e da janta, Casca de Ovo surgia com a fluidez dos eflúvios à casa/bodega de dona Hilda. À sua espera, um prato de comida à altura de sua importância.

Fernando. A invisibilidade sutil de um sujeito pacato que, com seu trabalho e seu modo de ser, ajudou a pacificar a  Rua da Frente.

Rua da Frente c:botequimEu, Caronte, o teria conduzido pelas águas tranquilas do Estige.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

A parte de cima da Rua do Meio, vista do lado que se inicia na Rua das Almas, foi uma das ruas por onde mais transitei na minha infância. Claro que todas as nossas brincadeiras eram feitas na parte de baixo, no trecho que se iniciava na prefeitura e terminava no Círculo Operário.

Dito isto, fica fácil entender minha dificuldade em identificar os moradores da parte de cima da Rua do Meio, na década de 1950. Para resolver essa lacuna, penetrei nos comentários postados neste blog e pedi ajuda a Dedé de Zé Lúcio, filho de Maria Venus (forma bonita de se identificar), Carlos Alberto e Miranda, o nosso Comandante.

Iniciando nossa aventura, temos do lado direito o Cine Coronel Fausto com toda a sua imponência de cineteatro. Vizinho ao cinema morava Huson Gois e sua esposa Enilza, irmã de Pantiquinho, tendo ao lado a casa de Manelzin Mucunza, pai de Chico Gurupi, vizinho do palacete de Zeca de Celso. Do lado esquerdo da rua, na esquina, ficava o armazém de de Pedro Leite; ao seu lado, em uma casa pertencente a Chico Souto, morava dona Edite Belém, que tinha como vizinho seu Adauto Ribeiro, pai de Sônia.

Descendo um pouco, tinha a casa de Antônio Calazans e dona Julinha e em seguida a casa de Dr. Vicente e dona Nenê, pais de Marcelo e Marconi. Do mesmo lado, o Cine Miramar dominava a paisagem, e muitas vezes perdia a hegemonia para as belas casas da Coletoria (onde morava a família dos Lúcio de Góis), tendo em frente a casa de Manoel Bento que, juntas, fechavam o quadrilátero.

Ainda do lado direito de quem desce, na casa ao lado da de Manoel Bento, onde morava Menezes, ficava a casa de Dr. Gentil e sua família, que não era pequena (a esposa e os filhos Ronald, Axel, Chico Zé e Haroldo).

Entre as casas dos Lúcio de Góis e o Maracangalha sempre houve uma edificação muito pouco citada nos comentários deste blog. Ali, várias atividades foram desenvolvidas, entre elas uma distribuidora de bebidas.

O Cine Miramar foi construído depois que o Maracangalha fechou; o prédio é o mesmo.

Sei que, em face do tempo, esquecemos pessoas muito importantes que residiam naquele trecho. Mas com certeza os comentários acrescentarão o que nossa memória deixou passar.

Evaldo de Zé Silvino, filho de Ester (com permissão de Dedé de Zé Lúcio, filho de Maria Venus)

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Esse trecho da Rua da Frente é uma área pouco visitada pelas pessoas de outras ruas. Trata-se, na verdade, de uma região diferente, mais calma, com uma igreja no início e o Tirol e a Praça do Pôr do Sol fechando o quadrilátero na outra ponta.

A parte de cima da Rua da Frente sempre perdeu para a parte de baixo quando o quesito é movimento, agitação. Em compensação, sempre levou muita vantagem no item charme e elegância. Essa dualidade me lembra aquele poema fescenino de autoria de Dr. Milton Ribeiro, A Bufa, que também se encerra na tentativa de esclarecer uma dualidade: Ganhando em cheiro o que em som perdeu, quem no cinema ou na igreja uma bufinha já não deu?

Saindo da igreja, confesso desconhecer quem é o morador desta primeira casa. Na segunda casa mora dona Cota, mãe de Manoel Avelino, que já foi prefeito. Na sequência, a bodega de Antônio Calazans, seguida de uma casa bonita, embora pequena. Aqui fica uma agência do Loyd Brasileiro. Nessa esquina funciona uma pensão, na casa onde morava o tenente Durval, que foi delegado da polícia. Era o terror dos foras da lei. No final da Rua da Frente, como que compondo o que em Brasília seria uma ponta de picolé, duas empresas de peso: a Mossoró Comercial e F. Souto.

Essas casas que ficam por trás da Praça do Pôr do Sol são o que há de charmoso e de ar pastoril em Areia Branca. Ficam aqui, protegidas por essas árvores, como que paradas no tempo, com aura de passado. É um dos lugares mais bonitos da nossa cidade.

Praça do Pôr do Sol hoje

Aqui na frente, duas estruturas que realmente tornam este lugar elegante, com ar bucólico e cheiro de saudade: o Tirol e a Praça do Pôr do Sol, aquela defronte a esta, as duas se misturando em um único encantamento. Parece até que uma não existiria sem a outra. Este local exerce um verdadeiro fascínio em mim. Às vezes penso que venho pouco aqui para não gastar minha dose de fascínio.

Fico por aqui. Vou sentar neste banco e assistir ao desembarque dos passageiros que estão chegando em uma lancha que acaba de atracar no Tirol. Esse som que vem dessa casinha branca tem tudo a ver com este momento. É a trilha sonora do filme Assim Caminha a Humanidade, recém lançado. O cais à frente, com o Tirol, é o cais da espera, que acolhe e dá abrigo. Vou ficar mais tempo aqui.

Foi uma das minhas últimas satisfações ao visitar aquele local.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

 

 

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