You are currently browsing the tag archive for the ‘viagem’ tag.

Há alguns meses a rotina do menino era essa. À tarde, no depois da escola, ele saía cedo para o trabalho. Em casa, dificuldades muitas. À noite, sob a luz amarelada e enfumaçada de uma piraca impregnada de tisna, punha seus estudos em dia.

Em casa, o clima estava tenso. O pai, transtornado, dera para beber, e o menino tinha que, de alguma forma, proteger sua mãe, um elo frágil naquela atribulada relação familiar. Na mente, lembranças de um tempo bom. Lembrava de uma casinha branca com uma árvore na frente, com um banco junto ao tronco. Riu, ao lembrar de Bicudo, um cão narigudo que fora adotado por sua família. 

A lembrança de uma viagem não saía de sua cabeça. Muito depois de antes de ontem, quando seu pai ainda trabalhava nas barcaças, viajara para Mossoró. Tomara um trem em Porto Franco e descera em Mossoró. Sua mãe fora junto. O pai iria participar de um encontro de marítimos. O menino não entendia por que em Mossoró, pois lá não tinha barcaça. Durante a viagem, brincou com as árvores que estavam distantes, fingindo chamá-las com a mão, e logo desapareciam ao lado de sua janela. O menino ficou deslumbrado. Não sabia que existiam cidades tão grandes e bonitas, com sinais de trânsito. Tinha até banco, onde as pessoas podiam depositar e retirar dinheiro. 

O menino não conseguia entender certas colocações de seus pais, como mecanização das salinas, motorização das barcaças, início da construção do porto-ilha, adaptação a novas tecnologias. Não compreendia como um homem que sempre trabalhara em barcaças tinha que perder o emprego devido a essas tais de novas tecnologias. Mas sabia que foi por isso que sua família saiu da casinha branca com um flamboyant na frente, pros lados de Pernambuquinho. Sabia também que estavam se preparando para viajar rumo a uma grande cidade. Mas não sabia qual.

Não era fácil chegar à escola. Distante de casa, tinha que caminhar meia légua na ida e, no retorno, brincava com a maré cheia, bulindo com os peixinhos que vinham à beira da água espionar sua passagem. Ou, na maré baixa, recolhia alguns pequenos búzios e casquinhas de taiobas, que pareciam as asas de um monstro que vira na única vez que fora ao cinema em Areia Branca, do outro lado do rio. Lembrava do nome: Cine São Raimundo, bem no fim de uma rua que saía da Rampa, passava pela prefeitura, seguia pelo mercado público, passava pelo grupo escolar e desembocava em um descampado, com o cinema à esquerda. Ao fundo, lembrava da construção de um prédio muito grande. Na placa, não conseguia ler um nome estranho: Maternidade Sarah… Ah, não lembrava o nome.

Naquele final de tarde, porém, tudo parecia ainda mais difícil. Prometera à mãe que retornaria com a janta, e aquela seria sua última tentativa. A maré avançava, e o menino, sentado, de frente para o trabalho, tentava iludir as sombras que, em conluio com réstias tremelicantes de um  sol que se ia, tentavam escurecer o seu já difícil campo de trabalho. O local era apertado, e seus pés já calejados tentavam escapar de inimigos cortantes, lâminas de boca escancarada, à espera do fitoplâncton, filtros vivos que eram.

Mas o buraco era profundo, direto para o oco da Terra, e o braço pequeno e fino não ajudava muito. E tudo dependia daquela empreitada. A noite se aproximava, trazendo consigo a cruviana, a desventura e o desencanto. O menino estava sujo, com as roupas em frangalhos; logo, mais dois buracos à sua volta foram identificados por aqueles olhinhos aflitos, cor de mel. Lutar era preciso, e o menino bem o sabia.

Ao final, exausto, colocaria em seu bornal mais três belos caranguejos. Jantar garantido, voltou para casa. No caminho, pediu desculpas aos pequeninos animais, porém a panela os esperava.

Nem sei se tinha que ser assim. Mas era assim.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Já publicado neste blog com outro título e outra formatação

Vai, alma minha. Viaja pelo infinito, onde os deuses olimpianos fizeram suas trilhas, travaram batalhas homéricas e conquistaram suas ninfas. Se perceberes faíscas rasgando o céu azul, são os ciclopes de Zeus zangados com Asclépio. Quem mandou aquele médico maluco reduzir a clientela de Hades, o todo poderoso deus dos mortos e do submundo?   

Vai, alma minha. Caminha pelas falésias da minha meninice, passeia pelas salinas e contempla os manguezais da minha infância.  Vencedora, conquistarás espaços, posições, posicionamentos; discutirás os temas que afetam a humanidade, sempre amparando a honra e o respeito pelo pensar do outro.

Sei que encontrarás empecilhos, dificuldades inerentes à luta pelo que achas correto. Vai e tenta convencer. Tens a força da verdade, a disposição dos justos, a visão de futuridade.

Vai, alma minha, com jeito e modos de criança, ajeitando os suspensórios sustentando calças curtas, sem medo dos embates. Segue em frente, a luta te chama; vai e retorna sorrindo.

Vai, alma minha, paira sobre incompreensões e rancores e, qual libélula multicor que um dia foi dragão, fica ziguezagueando pelo sem-fim dos desencontros, dos rancores e das incompreensões.  

Vai, alma minha, e, se te desgastares, transmuta-te em acalanto, conforta os infelizes e retorna ao teu ninho para te recompores. 

Vai, alma minha!

Reflexão durante o período mais cruel da pandemia.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Em todas as viagens que fiz a Areia Branca, o caminho era sempre o indicado no mapa rodoviário. Natal, Riachuelo, Lajes, Angicos, Açu, Mossoró. Localizado na metade do caminho, o Monte do Cabugi era nossa referência. É um lanche aqui e almoço no Passárgada, recheado com um papo cabeça com Toinho Tavernard.

No ano de 2016, resolvemos sair de Natal para Areia Branca desbravando novos caminhos. Saímos de Natal no dia 9 de agosto, passamos por Tangará; Santa Cruz em seguida, e daí a Acari. A partir desse ponto, esquecemos o mapa e tomamos o rumo que as bifurcações indicavam. Passamos por Milagre e Barbalha na Paraíba e adentramos o estado de Pernambuco; e, em um sem-querer-querendo, à noite estávamos em Juazeiro do Norte, a terra do Padim Ciço.

Depois de algum tempo em Juazeiro do Norte, retornamos por Cajazeiras com destino a Pau dos Ferros. No final da tarde passávamos por Mossoró, e fomos dormir em Areia Branca. Era a noite do dia 13 de agosto de 2016.

Em 2017 saímos de Natal sem caminhos definidos. Sabíamos que Areia Branca era nosso ponto de chegada, mas deixamos Natal sem saber por onde iríamos. Era meio dia quando passamos por Mossoró. Seguimos em frente e chegamos a Aracati. Por volta das dezenove horas passávamos pela costela mindinho de Fortaleza. Fomos em frente e paramos em Itapagé, onde dormimos. Ainda sem saber para onde iríamos, chegamos a Sobral pela manhã e à tarde vislumbramos Teresina, a bonita capital do Piauí, com seus inacreditáveis 23 graus Celsius. Era importante curtirmos Teresina nesse período de frio, e lá ficamos. Retornamos por Piripiri, Tianguá, Ubajara, Guaraciaba do Norte, Ipu, Hidrolândia e Santa Quitéria, e daí a Canindé, onde dormimos. De Canindé a Quixadá, e dali a Russas, onde almoçamos. De Russas a Mossoró levamos duas horas,  e passamos direto para Areia Branca na tarde do dia 13 de agosto.

No ano de 2018 saímos de Natal às oito horas e por volta das nove chegávamos a Bom Jesus, antiga cidade de Panelas. Daí fomos para Serra Caiada, cujo nome era  Presidente Juscelino. Lanchamos em Tangará e à tarde chegávamos a Caicó, onde passamos a noite. De Caicó a Jardim de Piranhas em pouco mais de hora e meia, e daí a Serra Negra do Norte, onde almoçamos. Ali, um povo bastante educado e escolarizado nos recebeu e nos encantou. À tarde chegamos a Carnaúba dos Dantas, que tem o Castelo Di Bivar como uma de suas atrações turísticas.

Um problema técnico obrigou-nos a retornar direto para Natal, onde chegamos à noite. Em 2018 não chegamos a Areia Branca.

No dia 16 de maio de 2019 seguimos o esquema de sempre: Natal, Serra Caiada, Tangará, Acari e Caicó, e ali almoçamos. Patu seria nosso próximo destino, e daí a Brejo do Cruz, a terra de Zé Ramalho. Nosso destino era Martins. Hospedamo-nos  no Hotel Serrano, em Martins, onde à noite consumimos uma panela de sopa que perderia apenas para a sopa do Hotel Costa Branca. Saímos de Martins no rumo de Campo Grande, onde almoçaríamos no Point Gourmet. Passamos por Mossoró às quinze horas e às dezesseis estávamos em Areia Branca. Um passeio pela praia de Upanema acalmou nossa ansiedade.

Hoje, uma constatação: os caminhos que nos levam a Areia Branca não estão nos mapas rodoviários, mas no eletrocardiograma.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

 

Queria relembrar as noites de natal de minha meninice em Areia Branca. Mas, para isso, preciso da ajuda da poesia. Porque aqueles dias não foram de flores. Houve muitos espinhos a serem contornados.

Se nos fixarmos no último natal, no ano de 1959, lembro bem. Foi naquele natal que meus pais acertaram os detalhes para a viagem que nos levaria para a cidade de Natal, que ocorreria 38 dias depois. E aquele foi o último natal a que meu pai assistiria. Dali a 55 dias ele morreria em Natal. Foi um período tão difícil quanto decisivo em minha vida. Eu tinha 14 anos de idade, e estudava na Escola Técnica de Comércio. Todos nós tivemos momentos de dificuldades, em que nosso futuro oscila à mercê de uma decisão que, muitas vezes, não nos diz respeito.

Para compor a música Viagem, Paulo Cesar Pinheiro, então com seus 14 anos, e João de Aquino, com seus 19, já nos avisam que a poesia os ajudou, e eles foram de carona na garupa leve do vento macio…

E a poesia assim os levou: Oh tristeza, me desculpe/Estou de malas prontas/Hoje a poesia veio ao meu encontro/Já raiou o dia, vamos viajar…/Vamos indo de carona na garupa leve do vento macio…

Mas, para esta minha crônica de natal, a poesia não veio ao meu encontro, e meu texto ficou seco, árido. Restou a lembrança de havermos nos divertido muito com os brinquedos das crianças das proximidades, fosse da Rua da Frente ou da Rua do Meio, visto que nossa casa tinha a frente para a primeira e o muro de trás para a segunda.

Meu natal de 1959. A poesia não veio. O texto ficou áspero, feito mandacaru.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

 

                                                                               As viagens são os viajantes. O que vemos

                                                                               não é o que vemos, senão o que somos

                                                                               Fernando Pessoa

Menino da Rua da Frente, nunca tive arroubos viajatórios. Nem poderia. Somente aos doze anos fiz uma viagem. Ao pegar a sopa que me levaria a Mossoró, muitos conselhos e recomendações de minha mãe. Uma hora depois desembarcava nas proximidades do mercado público, coberto de poeira. Fiquei hospedado na casa de Chico Lino, pai de Horácio.

Em Mossoró, com ares de beradeiro, conheci um banco de verdade, ao tempo em que admirei e me encantei com o Cine Pax, com suas colunas que me pareceram monumentais. Em Mossoró também conheci um estacionamento exclusivo para bicicletas, ao lado do cinema. De quebra, vi de  perto alguns sinais de trânsito em funcionamento, respeitados pelos poucos veículos que existiam àquela época. Ali, conheci o Mercado Público de Mossoró, que até hoje me encanta. Minha segunda e mais importante viagem da a minha vida ocorreria no ano de 1960, quando nos mudamos para Natal. Como a maioria das estradas era de terra, a poeira também foi nossa companheira de viagem.

Em Natal, uma de minhas primeiras viagens foi para Mossoró, a serviço. Na volta, um imbróglio quase me tira do sério. E do emprego. É que dois auditores do INSS vieram de carona conosco para Natal e fizeram uma aposta para ver de qual lado do carro havia mais jumento. E foram contando os animais, sob minha auditoria quase sempre neutra. A viagem, que demoraria 4 horas, demorou mais de seis. É que eles pediam para parar o carro a todo momento, para que pudessem contar os jumentos que passavam em grandes grupos. Certa vez, um deles desceu e se pôs a enxotar os jumentos para o seu lado, e eles insistiam em continuar do lado contrário, e quase sai briga entre os dois.

Em julho de 1971 viajei para Brasília. Aí, sim, minha grande aventura. Foi ali que conheci o Vale do Jequitinhonha, e dei de cara com o semblante da miséria. Nessa viagem tive a oportunidade de ver uma cerração pela primeira vez. Lembrei-me da cerração ao ver, pelos caminhos da Suíça, flocos gigantes de neve juntamente com chuva forte. Algo surreal, os dois, cada qual no seu tempo.

Na cidade histórica de Sacramento, no Uruguai, um aviso colocado no alto da porta de um pequeno restaurante me ensinou coisas novas. Ali, diverti-me com a sinceridade de um poema: Abrimos quando chegamos; fechamos quando nos vamos, e se vens e não estamos é que não coincidimos.

Aviso

Quando viajo para Areia Branca, as poesias rabiscadas nos muros de Upanema me emocionam, por falar das coisas do coração, como esta: Na ilha de Maritataca Belchior é recitado para fins medicinais. Um dez é pouco.

Poesia

Quando passamos por um lugar, aí deixamos, além de pegadas, nossas células de descamação, e são muitas. Nossos pelos ficam pelos caminhos, bem como nossas secreções e excreções. Desse modo, espalhamos o nosso DNA nos mais distantes pontos deste mundo. Os pássaros alimentam-se desses elementos e em seguida servem de alimento para as pessoas, replicando os nossos caracteres. Por outro lado, esses elementos são incorporados ao solo, formando compostos que serão ingeridos por seres humanos ao se alimentarem de frutas e verduras. É assim que pequenas partes de nós vão se incorporando a este imenso mundo, através das pessoas.

Células descamadas, secreções, excreções. Perpetuação do corpo pelas veredas do mundo.

Viagens são os viajantes. Por isso, cada pessoa tem sua viagem particular, que vai muito além da viagem física.

Porque a viagem é você.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

 

 

 

maio 2024
S T Q Q S S D
 12345
6789101112
13141516171819
20212223242526
2728293031  

Para receber as novidades do blog