You are currently browsing the tag archive for the ‘festas populares’ tag.

Quando eu era criança, Areia Branca tinha poucas ruas urbanizadas; as melhores com calçamento de carago – o asfalto branco, derivado do sal -, e boa parte delas invadida pela areia trazida por um vento quente que soprava das várzeas e das praias. Era um trabalho insano para a prefeitura, com suas antiquadas máquinas tentando remover o mar de areia solta que invadia ruas e becos, em especial para os lados da Ilha.

Na pracinha em frente ao Palacete Municipal, um velho coreto lembrava um passado recente com intenso movimento cultural. Tinha até banda de música. Nessa bandinha, meu pai tocava sua tuba em eventos populares, quando eu era criança. O Palacete Municipal era um pequeno e belo edifício, destruído pela volúpia do falso desenvolvimento. Em Braga, Portugal, visitei uma ponte construída na época do Imperador Adriano, no ano 80 d.C. E ainda funcionando. Construíram outras, mas a ponte romana continua servindo à comunidade. Uma relíquia.

Quando eu era criança, havia um cinema – Cine Coronel Fausto – com lordose postural própria dos teatros, tentando manter sua aparência de falsa grandiosidade. Somente quando vi o Cine Pax, em Mossoró, entendi isso, mas não falei para o nosso cineteatro, que continuou simulando grandeza ainda por muitos anos.

Quando eu era criança, os meninos usavam suspensórios para sustentar suas calças curtas. Calças compridas, somente depois dos doze, juntamente com a introdução da cueca.

Andar de bicicleta na Rua do Meio era um sonho para poucos. Eu, nas vezes em que quebrei o protocolo, fi-lo com uma bicicleta alugada na pracinha atrás da igreja.

As festas populares tinham uma grandeza e uma  animação impressionantes, com participação efetiva das famílias e de pessoas da sociedade. Os pastoris encantavam as noites festivas, com suas músicas e suas pastoras, em uma guerra azul e encarnada. As prendas eram disputadas em animados leilões., em que se destacavam perus e pratos especiais. O correio elegante encantava jovens e adultos, promovendo amizades e namoros.

Os carros que circulavam eram coisa rara. Além da sopa para Mossoró, lembro do tão falado carrinho de Valquírio que, em minha mente, era de uma beleza celestial. Nem sei sua marca ou ano de fabricação. Sei que encantava crianças e adultos.

A honra das pessoas era algo levado a sério. Naquela época, contavam que em Macau um jovem havia feito mal à irmã de dois rapazes que, em represália, castraram o malfeitor. Este, como vingança, assassinaria os dois irmãos. O cabaço era levado a sério. Menstruação era boi. Fulana não vai à festa; estava de boi. Isso somente circulava entre as mulheres. Os homens não podiam saber desse fato.

Quando eu era criança, o zíper era ri-ri, o refrigerante era Grapette, o Almanaque Capivarol era leitura obrigatória, e um dos remédios mais usados eram as Pílulas de Vida do Doutor Ross. Os cabelos da rapaziada eram mantidos lisos e lustrosos com brilhantina Glostora – nada de coiffer; no bolso, um pente Flamengo e um  espelho redondo eram chamados ao serviço no decorrer da noitada, fosse na pracinha ou no Ivipanim clube.

Os jovens conversavam ou namoravam nas calçadas. Namoro, nos conceitos de então, era namoro, mão na mão. Naquela época, havia roubo de moças. Elas fugiam com seus namorados na escuridão da noite, causando desconforto e muita agitação. O casamento era quase certo, na sequência.

Quando eu era criança, as pessoas, à noite, sentavam-se nas calçadas para discussões tipo miolo de quartinha. No mercado público, vendedores de pílulas mágicas fingiam-se de índios para, suados e aos gritos anunciavam falsas esperanças ao custo de quinhentos réis. Nas ruas, nos períodos em que as férias determinavam a soltura das rédeas do comportamento, crianças circulavam em grupos, com seus piões a tiracolo, em busca de embates em que o rodar e o corrupio juntavam-se em um bailado de pedigree renascentista, capadociando cores, espaço e tempo; coisas de então. Nas várzeas e descampados, vistos à distância, espectros de meninos cabriolavam em meio à cortina de poeira, segurando e guiando seus papagaios – pipas – antes do banho no rio Ivipanim, justo na hora em que os barcos de frutas, com o cansaço de além-rio, repousavam sua barriga na Rampa, em um premeditado quase sem querer querendo. Em casa, um sabonete Eucalol daria um trato para as conversas na pracinha.

Nas noites de sexta-feira, serenatas ecoavam em calçadas de moçoilas ansiosas, com seus chambres brancos. No contraponto, poderiam ocorrer pesadas serrações, em que os maus presságios e a grosseria tinham vez e voz.

A vida era assim, quando eu era criança.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Texto já publicado neste blog, com outra formatação.

Tudo passou há muito tempo. Mas parece que foi ontem. Zé Lagatixa, nasceu em 1907. Eu nasci em 1956. Assim, quando nasci Zé Lagatixa já tinha 50 anos, nessa idade Ele já estava quase cego, e aposentado pelo IAPETEC( Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas). Ele trabalhava em Porto Franco, no Gesso, sem nenhuma proteção para os olhos.

Antes de Porto Franco ele foi marinheiro, mas não tenho notícia de que tenha viajado para fora do país. Ele falava da praça Mauá, no Rio de Janeiro; dá a entender, portanto, que a viagem mais longa foi até o Rio.

Zé Lagatixa era farrista por natureza, gostava dos bailes, das valsas e dos carnavais. Por outro lado, a minha avó Antônia não gostava nada disso; até era contra.

O pai da minha avó Antônia, Olinto Ferreira de Brito, veio de Luís Gomes/RN, com toda a família, e quando chegaram em Areia Branca, a minha avó Antônia tinha 10 anos de idade. Ela nasceu em Luís Gomes, em 1910. Conta-se que Olinto não retornou mais a Luís Gomes; dos filhos dele, só o tio Cirilo que retornou. (verifiquei que de Luís Gomes a Areia Branca são 242km, o trajeto é feito pela BR 405, em 3 horas e 31 minutos). Imagine naquela época um comboio de jumentos carregando os pertences, e a família acompanhando, e chegaram em Areia Branca fugindo da seca em 1920. Em Areia Branca, Olinto encontrou trabalho em Porto Franco e todos os filhos homens foram estivadores, menos o tio Cirilo que teve uma vida mais sacrificada. Merandolina Maria da Conceição, às vezes, reclamava da vida, mas Olinto replicava, “você não deixou Eu procurar meu tesouro” . Ele dizia que o tesouro dele estava em Minas Gerais.

A situação estava boa, Olinto comprou uma máquina de costura e dizem que um dos primeiros rádios de Areia Branca foi dele. A máquina de costura ele prometeu dar de presente à minha avó Antônia quando ela se casasse. Mas Olinto não esperava que a minha avó Antônia fosse namorar Zé Lagatixa. Daí a menina que nunca desobedeceu a ele, casou-se com José Luiz da Silva, passando a assinar de Antônia Ferreira de Brito para Antônia Ferreira da Silva.

E Zé Lagatixa, nos primeiros anos de casamento, não bebia; ia para os bailes, para as valsas, tocava pandeiro, tocava gaita. Mas depois passou a beber, uma vez, outra e outra, e as brigas e as agressões.
Foi nessa situação que a minha mãe, com 7 anos, foi adotada por eles, na realidade não foi uma adoção, pois ela foi dada para ser criada, uma filha de criação.

Com a morte do meu avô Irineu Pereira Maia, a minha avó Joana Ferreira da Silva dá sua filha mais nova (Jovina Joana) à minha avó Antônia. Até hoje não sei dizer se existe algum grau de parentesco entre as minhas duas avós. A minha avó Antônia disse que foi buscar a minha mãe em Areias (Icapuí) de barco. (Areia Branca – Icapuí = 59km). O que soube depois é que naquela época havia briga de família, mas isso é outra estória. Para Zé Lagatixa era só festa, não havia tempo ruim. Mesmo cego, era procurado para tocar pandeiro.

Quando dei conta de mim, foi sendo carregado (no tuntum) por Zé Lagatixa, em direção à praia do meio para pegar taioba.

Um homem que soube viver a vida que teve.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN.

Nos anos 1930, Zé Lagatixa participava ativamente da bandinha que animava os eventos da cidade.

Este ano, a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes foi programada com todo o rigor para ser curtida em casa, com a famílias e os amigos. Os eventos iniciaram na quinta-feira, 6 de agosto, com show de bandas forró. No dia 7, sexta-feira, foi a vez de grupos de pagode se apresentarem. As lives seguem até hoje, dia 14, e sempre acontecem no período da noite. Amanhã, dia 15, a prudência manda que as pessoas fiquem em casa. A prefeitura montou barreiras restritivas para evitar o acesso de visitantes, turistas, peregrinos e romeiros à cidade.

Convite Convite

De todas as minhas recordações da infância em Areia Branca, a Festa de Agosto é a que mais exige de minhas reminiscências. O povo nas ruas, a pracinha repleta de estudantes e adultos envolvidos pelo clima de festa que a todos envolvia. Era época de retorno de pessoas da cidade, de amigos distantes, de movimentação e alegria.

Neste 15 de agosto – Festa de Nossa Senhora dos Navegantes – não teremos as barraquinhas de tiro ao alvo, nem aquelas com bonequinhos de alfenim em formato de vaquinhas, mulheres, homens, meninos e meninas. Também não haverá barraca com suco de frutas, com maçã do amor ou guloseimas estranhas, com cheiro de xarope de groselha.

Pelas ruas, poucas pessoas se movimentando, no atendimento às orientações dos entendidos em pandemia. Nos bares, uma clientela sedenta e exasperada pelos limites impostos pela quarentena se prepara para um conhecido ritual, repetido nas noites quentes da Salinésia. A pracinha silente e vazia sinaliza que a agitação foi cancelada. Solidão e silêncio.

O rio Ivipanim, ao que parece, terá movimentação muito reduzida. A pandemia exige recolhimento e cuidados com a vida.

Porém não podemos deixar passar o dia 15 de agosto sem a emoção que flui do vai e vem das pessoas, dos reencontros, dos abraços. Aqui, alguns momentos da Festa de Nossa Senhora dos Navegantes dos anos de 2013 e 2014, para que não esqueçamos de tudo que emana de um evento em que o sagrado e o profano se misturam em uma exigente amalgamação.

DSC01252

DSC01239

DSC02645

DSC02661

A festa. A fé. Os (re)encontros, agora em casa. A alegria de um povo.

Sejamos, todos, fômites do bem, transmitindo confiança e fé no que virá.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

 

De algum lugar do passado, formatou-se em meus ouvidos o som de um instrumento de sopro adorado por meu pai. De minha memória, hoje um pouco desgastada, ressurgiu inteiro o som de um sax baixo que ecoava por ruas e becos pelos idos dos anos 1950/60, animando festas do povo, em um tom maior hoje defendido por Martinho da Vila – Vai ter que amar a liberdade; só vai cantar em tom maior… O som fluía de antigas valsas que eu, criança, não conseguia entender. Era um som distante, pros lados da Ilha, a meio caminho de Honorina. Hoje, sei que emanava de salões quentes, naquelas tardes domingueiras da minha meninice, com o cheiro de cerveja e cuba libre misturando-se à fumaça que ali corria livre.

Nas veredas retrofílicas do meu pensamento, descobri grupos de rapazes saindo para fazer serenatas nas calçadas de suas amadas – era uma brasa, mora! -, nas noites de sexta e sábado, fosse sob o luar escancarado ou sob as velinhas tremelicantes das estrelas. No outro dia, o burburinho nos colégios dominava os comentários das moçoilas de coração mole.

Areia Branca era uma cidade calma e pacata, quase sem violência. Havia um Delegado (esse, com D maiúsculo) – Tenente Durval -, que determinava a um elemento que acabara de cometer uma desordem ou provocar uma arruaça: daqui a meia hora, esteja na delegacia! Meia hora depois o elemento já estava à espera do Delegado. O mesmo Delegado determinava que os presos varressem as ruas próximas à delegacia. Depois do trabalho, todos retornavam ao cárcere. Era o império da Lei e da Ordem.

Os estudantes – parece óbvio – preocupavam-se em estudar, e a meninada passava a tarde e entrava pela noite pondo em dia os trabalhos da escola. E ainda tinham que se preparar para o Exame de Admissão ao Ginásio. E a longa espera pelas férias.

Nas festas populares, o povo saía às ruas para ver apresentação de pastoris; no São João, quadrilhas juninas de verdade apresentavam-se para o povo. As igrejas organizavam festas com leilões, onde as  disputas entre os frequentadores duravam vários minutos, com lances provocadores, levando as pessoas ao delírio. A juventude, fosse no depois das aulas, fosse nos finais de semana, já a partir da sexta-feira, marcava encontros informais na pracinha, onde as meninas circulavam em um sentido e os rapazes em sentido contrário, em um gostoso sem-querer-querendo a provocar encontros e afagos verdadeiros.

A evocação do sax alto trouxe-me à mente a lembrança de ter visto, imagino que no ano de 1955, Cauby Peixoto e Ângela Maria. Esta, se não traído pela memória, ficou hospedada na casa de Geralda Cruz, pois na época não havia hotel na cidade. Peças de teatro eram encenadas no Cine Coronel Fausto. Ah, e a bandinha da cidade tocava no coreto da pracinha em frente ao palacete municipal. Provas de ciclismo arrastavam multidões em torno de praças, e o futebol nas ruas corria solto, nas horas de folga, que ninguém é de ferro.

Naquela época não havia top model revelação, mulher goiaba, mulher tanajura, apresentação de ex-BBB, garota fashion nem o jovem look da cidade. No contraponto, não se falava em violência, atropelamentos, assaltos, dengue, cólera, aids, nem se conheciam as maravilhas do computador, da nanomedicina e da ciência noética. Também não se conheciam os terríveis efeitos das canetas de laser verde – laser point, utilizadas por irresponsáveis nos estádios de futebol -, que, aqui em Brasília, causaram lesão ocular grave em uma criança e quase põem abaixo um helicóptero, na tentativa de um adolescente de atrapalhar a visão do piloto.

Fico imaginando que, no futuro, os jovens de hoje terão como lembrança um Ex-My Love com o gosto travoso de um Assim Você Me Mata.

Daí, o som de um sax baixo mexer tanto com meus sentimentos.

junho 2024
S T Q Q S S D
 12
3456789
10111213141516
17181920212223
24252627282930

Para receber as novidades do blog