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A pelada corria solto na Rua da Frente. Passa a bola, gritava um. Cuidado com Casca de Ovo!, gritava outro. Muita gente em volta, junto à calçada, assistia ao jogo. Os pés de fícus benjamin serviam de cobertura para aquela arquibancada mais que improvisada.

A certa altura, sem que os meninos percebessem apareceu alguém e sentou sobre a bola. Para tudo! Vamos tentar resolver esse imbróglio, falou um do grupo dos sem camisa. Nesse jogo havia dois irmãos gêmeos, que não lembro o nome. Um jogava no time dos sem camisa e o outro defendia a equipe dos  com camisa.

Voltemos ao imbróglio. Um rapazola com idade entre catorze a dezesseis anos, continuava sentado sobre a pelota, gesticulando desbragadamente, dando a entender que o jogo só reiniciaria se ele participasse da partida. Naquela época não se usava a LIBRA.

Os garotos se reuniam em pequenos grupos, discutiam algo, xingavam; alguém mais afoito provocava o adolescente e saía correndo, face à real ameaça de agressão. Quando tudo parecia perdido, meu irmão Heraldo, sem nada dizer, foi ao lado do rapaz e deu-lhe uma bofetada tão violenta na orelha que o jovem deu um forte grito e saiu em desabalada carreira, com os olhos esbugalhados, urrando feito um animal ferido.

Na calçada, um moço que assistia ao jogo profetizou: Ele ouviu! Essa pessoa conhecia o jovem, e sabia de sua condição de surdo-mudo. Falou que ele era muito agitado, e que morava na saída da cidade, pros lados da Ilha.

Alguns anos depois, em uma aula de otorrinolaringologia, tendo um crânio nas mãos, descobri-me sorrindo baixinho, no canto da sala, às voltas com o estudo do martelo, da bigorna e do estribo. Ah, e o caracol. Ele ouviu! Falei baixinho. E fiquei balançando a cabeça em sinal de confirmação.

Uma bofetada despertando, talvez, o primeiro som perceptível de uma vida.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Tudo passou há muito tempo. Mas parece que foi ontem. Zé Lagatixa, nasceu em 1907. Eu nasci em 1956. Assim, quando nasci Zé Lagatixa já tinha 50 anos, nessa idade Ele já estava quase cego, e aposentado pelo IAPETEC( Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas). Ele trabalhava em Porto Franco, no Gesso, sem nenhuma proteção para os olhos.

Antes de Porto Franco ele foi marinheiro, mas não tenho notícia de que tenha viajado para fora do país. Ele falava da praça Mauá, no Rio de Janeiro; dá a entender, portanto, que a viagem mais longa foi até o Rio.

Zé Lagatixa era farrista por natureza, gostava dos bailes, das valsas e dos carnavais. Por outro lado, a minha avó Antônia não gostava nada disso; até era contra.

O pai da minha avó Antônia, Olinto Ferreira de Brito, veio de Luís Gomes/RN, com toda a família, e quando chegaram em Areia Branca, a minha avó Antônia tinha 10 anos de idade. Ela nasceu em Luís Gomes, em 1910. Conta-se que Olinto não retornou mais a Luís Gomes; dos filhos dele, só o tio Cirilo que retornou. (verifiquei que de Luís Gomes a Areia Branca são 242km, o trajeto é feito pela BR 405, em 3 horas e 31 minutos). Imagine naquela época um comboio de jumentos carregando os pertences, e a família acompanhando, e chegaram em Areia Branca fugindo da seca em 1920. Em Areia Branca, Olinto encontrou trabalho em Porto Franco e todos os filhos homens foram estivadores, menos o tio Cirilo que teve uma vida mais sacrificada. Merandolina Maria da Conceição, às vezes, reclamava da vida, mas Olinto replicava, “você não deixou Eu procurar meu tesouro” . Ele dizia que o tesouro dele estava em Minas Gerais.

A situação estava boa, Olinto comprou uma máquina de costura e dizem que um dos primeiros rádios de Areia Branca foi dele. A máquina de costura ele prometeu dar de presente à minha avó Antônia quando ela se casasse. Mas Olinto não esperava que a minha avó Antônia fosse namorar Zé Lagatixa. Daí a menina que nunca desobedeceu a ele, casou-se com José Luiz da Silva, passando a assinar de Antônia Ferreira de Brito para Antônia Ferreira da Silva.

E Zé Lagatixa, nos primeiros anos de casamento, não bebia; ia para os bailes, para as valsas, tocava pandeiro, tocava gaita. Mas depois passou a beber, uma vez, outra e outra, e as brigas e as agressões.
Foi nessa situação que a minha mãe, com 7 anos, foi adotada por eles, na realidade não foi uma adoção, pois ela foi dada para ser criada, uma filha de criação.

Com a morte do meu avô Irineu Pereira Maia, a minha avó Joana Ferreira da Silva dá sua filha mais nova (Jovina Joana) à minha avó Antônia. Até hoje não sei dizer se existe algum grau de parentesco entre as minhas duas avós. A minha avó Antônia disse que foi buscar a minha mãe em Areias (Icapuí) de barco. (Areia Branca – Icapuí = 59km). O que soube depois é que naquela época havia briga de família, mas isso é outra estória. Para Zé Lagatixa era só festa, não havia tempo ruim. Mesmo cego, era procurado para tocar pandeiro.

Quando dei conta de mim, foi sendo carregado (no tuntum) por Zé Lagatixa, em direção à praia do meio para pegar taioba.

Um homem que soube viver a vida que teve.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN.

Nos anos 1930, Zé Lagatixa participava ativamente da bandinha que animava os eventos da cidade.

Dois anos depois que eu havia saído do Círculo Operário, que ficava na esquina da rua, logo abaixo da casa de Toinho Beiju, para estudar no Grupo Escolar Conselheiro Brito Guerra, aconteceu uma das raras brigas no Círculo Operário, entre um menino e uma menina, logo na primeira semana das aulas. 

O garoto, que todos sabiam ser uma criança malina (gostava de provocar), recebeu da mãe os equipamentos que seriam utilizados na escola, que ficava pertinho da minha casa. Era um material muito simples: um lápis, uma borracha que servia de chapéu na cabeça do lápis e um caderno.

Logo nos primeiros dias de aula, o garoto mexeu com uma menina que se sentava ao seu lado (Iracilda?), em um banco para quatro alunos. A menina não gostou de ser provocada e deu uma bofetada no rosto do garoto, e os dois se atracaram. No vai e vem da briga, a garota deu uma dentada na orelha do menino, que se enfurecia a cada bofetada que sofria.

A professora Dorinha logo interveio, e com muita dificuldade conseguiu que a garota liberasse a orelha do menino, que precisou de um bom curativo. Esses tipos de lesões (de pequena monta) eram encaminhados para o IAPTEC – Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Estivadores e Trabalhadores em Transportes e Cargas, que ficava próximo à escola. Era ali que trabalhava Dr. Gentil Fernandes e um enfermeiro muito conhecido em Areia Branca, que suponho ser José Carvalho. O garoto voltou para casa com um generoso curativo em sua orelha direita.

Esse fato me lembra o que aconteceria 43 anos depois, em 1997, entre Mike Tyson e Evander Holyfield, dois dos mais famosos boxeadores da História, quando foram protagonistas de um combate que se tornaria lendário. Naquela ocasião, Mike Tyson foi desclassificado por morder e arrancar parte da orelha de Holyfield.

Orelhas à parte, tudo resolvido entre os contendores. Os de lá e o daqui.

Hoje, aquele garoto é um pacato pai de família, aposentado do Banco do Brasil.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RNC

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