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Vi um menino de canelas finas correndo pela Rua do Meio, calças curtas sustentadas por suspensórios, sonhos a realizar. “O mundo é vasto e o tempo é curto”, tinha como mantra. Por que e para onde corria aquele menino?

Vi outro menino preocupado com coisas a serem conquistadas, com poucas opções em sua bagagem. Limitações, desesperança, dificuldades. Saíra de uma rua na lateral do grupo escolar e corria para um local incerto, mas seguro.  

Vi um menino lutando por seus direitos, mesmo sem o sabê-lo. “Não faço isso porque é errado e injusto!” Mas era uma criança; o bodoque, curto. Soubera de que algumas crianças testaram uma funda, na Rua da Frente, e se deram mal. Na primeira vez que a usaram, acertaram a nuca de um homem que passava, e houve problema. Mas foi em frente com seu bodoque curto.

Vi um menino desejando o que não podia, um sonho distante, afrontando o conteúdo de seu portfólio de criança pobre. Mas corria, mesmo sem sabor para onde.

Vi um menino correndo devagar, transparecendo calma, esgueirando-se por caminhos estreitos, que ao fim se alargavam. Entrou no Beco da Galinha Morta, vindo dos lados da Rua das Almas, e se descobriu descortinando a igreja matriz e a pracinha. Seguiu em frente, no rumo do cais. O mundo a conquistar.

Vi um menino aflito, que corria em busca do ponto futuro; as incertezas e as opções se reduzindo. Janelas do tempo. Bondes da história. Essas coisas. Mas ele também seguiu em frente.

Vi um menino crescendo, formatando anseios, movimentando afetos, espargindo aura e fluidos benfazejos. Corria para o mesmo lugar que os outros.

Vi outro menino chorando, a dureza da vida a exigir além das forças, quase no limite do impossível, um alto preço a ser pago. Mas corria na mesma direção, balançando os bracinhos no alto, em sinal de regozijo. 

Hoje, na beira do cais, no ponto exato do espaço-sonho onde todos se reuniram para festejar, foi erguida uma bela escultura de um pescador gigante que também caminha em busca de seus sonhos. Ali, gritos de crianças, um viva à vida, e a constatação de uma difícil aprendizagem; uma luta quase isenta de compensações, até então. Ali, também o sentir-se feliz não pela chegada, mas pelo caminho percorrido.

Meninos de calças curtas sustentadas por suspensórios. O futuro real do hoje, bem além dessas quinhentas crônicas.

Evaldo Alves de Oliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Desde 2009 escrevo crônicas para este blog, criado pelo Prof. Carlos Alberto, apresentando e discutindo temas exclusivos sobre Areia Branca, suas estórias, seus tipos populares, seus vultos históricos, que são poucos. Com este texto, completo 500 crônicas apenas nesse blog. Continuaremos na luta, enquanto houver um ponto futuro a nos impulsionar.

Blog pessoal: AreiabranquiCidade – evaldoab.wordpress.com.

Uma olhada nos dados do Observatório da Violência Letal Internacional e constatamos que os assassinatos em Areia Branca aumentaram 133% entre 2015 e 2017. Números assim retratam uma desenfreada violência nas cidades do Rio Grande do Norte, tendo Mossoró como líder nesse ranking. São assassinatos de homens, mulheres e crianças, digo, adolescentes, que colocam a Salinésia entre as vinte mais violentas do estado. 

Somos de uma geração (1950/60) que conheceu a paz. Os homicídios ocorriam muito raramente. Havia brigas, desordens, confusões, mas os assassinatos eram esporádicos.

Durante minha infância e adolescência em Areia Branca, lembro de pouquíssimas mortes por atos de violência. Recordo de um assassinato no mercado público, que ficou conhecido como crime dos irmãos Paulino, da morte de uma moça por um tiro disparado pelo namorado, que brincava com uma arma, ocorrido em uma lojinha que ficava entre o mercado e o grupo escolar. Lembro do caso de um forasteiro que tentou enganar algumas pessoas e recebeu uma facada na barriga, na Rua da Frente.

Os roubos e os furtos também eram eventuais, sempre sem violência. Morei todo esse tempo na Rua da Frente, onde pululava uma fauna humana diversificada, e não lembro de crimes violentos.

Por trás disso, um homem da lei. Quando criança, muito ouvi falar do Tenente Durval e sua equipe. Muitas vezes, ele prendia uma pessoa na rua e a mandava esperá-lo na delegacia. Jamais soubemos de alguém que não tivesse esperado o delegado chegar. E tem mais: os presos, toda semana, varriam a rua da delegacia. E sem escolta.

Sei que a violência nas pequenas cidades é antiga, e aqui vou contar um fato ocorrido na Serra do Teixeira, na Paraíba, no ano de 1876. Quatro elementos fora-da-lei tinham o condão de deixar a população em desespero, e muito apreensiva. 

Liberato Dantas, o delegado, não se convencera de que deveria assumir tamanha responsabilidade, com poucos suportes além da coragem e da bravura sua e de seus comandados; mesmo assim disse o esperado “sim” e partiu para o que desse e viesse. A ordem e a justiça seriam mantidas a qualquer custo. Fosse quem fosse, teria de cumprir as leis e a ordem. Esta era a determinação do homem da lei.

Os fora-da-lei imaginavam que quanto mais depressa se testa uma nova autoridade, mais rápido ela é desmoralizada, e o campo fica aberto para o império da desordem, sempre a serviço dos mais fortes.

Fama é pouco, braveza tem de ser testada. Certo dia, um dos elementos entrou na cidade fortemente armado, o que já era uma provocação. Carecia ganhar a primeira batalha com o delegado da vila. Observou e escolheu o dia; o lugar era feira. Que delegado, naquela época, teria coragem de colocar o povo entre dois fogos? O fora-da-lei queria ganhar, economizar munição e desacatar o delegado Liberato diante dos habitantes da vila e das redondezas.

O delegado ponderou riscos e forças. Não apareceu na feira, e a provocação do meliante não foi confrontada. Caiu no vazio. Sua cruzada não frutificou. O fora-da-lei deu um grito de guerra e saiu levantando poeira no rastro dos cavalos. E houve louvores a todos os santos, pelos que se viram livres de tão sinistra companhia.

Onde estava a bravura do Delegado Liberato? O júbilo da liberação do perigo logo deu lugar à maledicência e à galhofa. “Cadê a brabeza do homem, que nem aparecer apareceu?” –  tripudiavam.

Não demorou muito e um jegue esbaforido trazia um caboclo e uma notícia: aquele meliante mal acabara de gargalhar sua estrondosa vitória e um tiro partiu de trás de umas pedras enormes que ladeavam a estrada. No lombo de um jumento, o corpo do meliante selava o compromisso do delegado. Apanhado de surpresa, o forasteiro ainda tentou reação, sob a saraivada de tiros do delegado e seus homens.

Foi um reboliço na feira. O delegado aumentou sua fama. O bicho era homem! Enfrentou e matou o temido fora-da-lei. Nomes dos quatro fora-da-lei: Manoel Rodrigues, Cirino, João e Juvino Guabiraba, vindos de Pajeús de Flores.

Em Serra do Teixeira ou em Areia Branca, a ordem pela determinação e pela força de um delegado.

Nos tempos do Tenente Durval a brilhantina era Glostora!

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Esta semana conversei com Francisco, meu irmão mais novo, o empreendedor da família. Da conversa sobre assuntos gerais, logo surgiu o tema do futebol. Ele lembrou que, nos dias de jogos no Campo da Saudade, a criançada (ele inclusive) ficava na porta do campo esperando algum jogador conhecido. O jogador, ao entrar, colocava a mão na cabeça de um ou dois garotos e todos entravam sob seu guarda-chuva. Ainda havia os fura-fila.

Relembrou as famosas e icônicas cambalhotas de Charuto, ao defender as bolas, lembrando as estripulias de Higuita, goleiro colombiano protagonista na criação de maluquices, ícone da irreverência dentro de campo. Lembrou de Dedeca Simeão, que em sua avaliação era o melhor e mais elegante jogador de Areia Branca. Dedeca era zagueiro central, considerado uma lenda pela potência de seus chutes. Durante um jogo no Campo da Saudade, Dedeca deu um chute tão forte que a bola subiu à altura da torre da igreja, e caiu murcha. Furou.

Com a narração entrecortada por grandes risadas, Francisco contou que certa vez, durante um jogo decisivo de um time de Areia Branca contra uma equipe de Mossoró, aconteceu algo muito inusitado. Naquela época havia uma cerca de madeira em torno do gramado, e as pessoas ficavam assistindo ao jogo apoiadas na parte de cima dessa cerca. Um rapaz de Areia Branca, como faziam quase todos os adultos, assistia ao jogo de pé, com os cotovelos sobre a madeira, em grande empolgação, e aos gritos incentivava os jogadores do time local.

O jogo evoluiu, e o rapaz aos berros, muito agitado, participando de cada jogada. Seu isso, seu aquilo; filho dessa, filho daquela; desse jeito, roubando, não dá! A certa altura do jogo, um zagueiro do time de Mossoró, em um puro sem-querer-querendo, deu um bico violento na bola e ela foi direto no saco escrotal do sujeito empolgado, que caiu para trás, estatelado, perdendo os sentidos. Foi socorrido pelas pessoas que estavam em sua volta e minutos depois estava com seu nível de consciência restaurado. Na sequência, sacou uma faca, entrou em campo correndo atrás do jogador do time de Mossoró. A partida teve que ser suspensa, para que o pretenso agressor fosse contido, retirado de campo, e o jogo pudesse ser reiniciado.

Campo da Saudade. Futebol, vibração, alegrias e muitas trapalhadas.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Dos casos de violência ocorridos em Areia Branca, meu irmão Ivo fez-me lembrar de um que aconteceu com um forasteiro, em frente à bodega do nosso pai.

A vida fluía normalmente na Rua da Frente, em um dia do ano de 1958. Como em um sem-querer-querendo, apareceu um elemento de fora da cidade, sentou-se em um banco que havia debaixo de um pé de fícus em frente à mercearia do meu pai e ficou olhando o rio Ivipanim, deliciando-se com o vai e vem dos barcos e barcaças. 

De leve, desdobrou uma mesinha de ferro que trazia consigo e começou uma onda de provocação, desafiando alguém para uma aposta. Quem se dispunha a tentar acertar em qual daqueles copinhos estaria a bolinha que ele esconderia? Provocou, alardeou sua coragem, mas ninguém se dispunha a pôr seu dinheiro em risco.

Uma pessoa que presenciava com atenção o movimento dos copinhos decidiu apostar, e o forasteiro colocou a moeda de mil réis na mesa, batendo e alardeando seus dotes de prestidigitador. Mexeu os copinhos, deixando que o homem que estava prestes a apostar visse em qual copinho ele havia colocado a bolinha. O homem, então, pôs a mão no bolso e tirou sua moeda de mil réis. Nesse exato momento, o manipresto, com um movimento quase imperceptível, mudou a bolinha de lugar. O apostador colocou a mão sobre o copinho em que supunha estar a bolinha e exigiu que todos assistissem o momento em que ganharia aquela aposta. O homem desvirou o copinho e a bolinha não estava ali, mas em outro copinho.

Gerou-se então uma grande confusão, com empurrões e impropérios. O apostador sacou sua faca da cintura e deu uma cutilada no prestidigitador, que ficou com a mão na barriga, constatando que o ferimento não era grave. O homem da faca pulou no rio, que estava bastante cheio. O sujeito da banquinha correu atrás e também pulou na maré. Nadou rapidamente e logo alcançou o elemento que o ferira, a uns cem metros do cais, provocando-lhe dois ferimentos de faca.

Ao cabo e ao fim, ninguém morreu. Pelo que se sabe, o sujeito da mesinha nunca mais apareceu pros lados da Salinésia. 

Escaldaram o gato.

EvaldOOliveira

Sócio Correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do RN

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